Brasileira relata sofrer negligência médica com filho autista em Portugal


Letícia Gurgel é mais uma brasileira em terras lusitanas com uma triste história para contar. Há 5 anos, quando saiu de Belo Horizonte para viver em Portugal, a mãe solo de um adolescente autista não verbal de suporte (dependente de apoio para o resto da vida), vem enfrentando um processo penoso para que o seu filho seja integrado ao Serviço Nacional de Saúde (SNS).

Segundo a designer de interiores, em Portugal, para ter direito ao subsídio destinado a pessoas com deficiência é necessário ter um Atestado Multiuso, documento que precisa comprovar uma incapacidade mínima de 60%. No caso do seu filho, o resultado da perícia, que demorou quase dois anos para ser concluída, foi de 80%. “Para marcar o exame é preciso um encaminhamento do médico de família do Centro de Saúde da sua zona de residência, algo que, obviamente, não temos”, desabafa. “Como eu mudei de cidade por três vezes e esse processo não é interligado, precisei fazer o pedido e ir para o final da fila”, sublinha.

A brasileira conta ainda que a sua solicitação no Centro de Saúde da Moita, onde reside atualmente, só caminhou depois que ela resolveu denunciar o caso à Secretaria de Saúde. Letícia revela que só assim o seu filho conseguiu ter acesso ao acompanhamento de uma pedopsiquiatra, que já o acompanha há um ano. “Em março, foi solicitada a internação do meu filho no Hospital Dona Estefânia, em Lisboa, o único da região que oferece atendimento para pessoas com deficiência mental. Porém, até hoje não conseguimos uma vaga, mesmo somando diversas crises nos últimos meses.”, pontua.

Letícia Gurgel relata que sempre precisa de socorro para colocar o seu filho (de 1.85 m de altura) dentro do carro e levá-lo às urgências. “Ele fica muito agitado e agressivo quando passa por essas crises. Eu não consigo contê-lo sozinha. Para você ter uma noção da gravidade, em uma das situações, ele arrancou parte do meu cabelo no bulbo com a própria boca”, revela. 

Foi durante uma dessas crises brutais que ela e seu filho se viram mais uma vez em situação de descaso no sistema público de saúde português na madrugada de sexta para sábado, dia 16 de dezembro. Há três dias dormindo apenas 2 horas por noite, mesmo com forte medicação, o adolescente começou a ter problemas na escola.

Por volta de 1:30, Gurgel alegou ter ligado ao SNS para pedir uma ambulância até o Hospital Dona Estefânia. Por estar com privação de sono, ela acreditou que essa seria a melhor opção, pois não poderia colocar a vida de ambos em risco e conduzir por 40 minutos de Moita a Lisboa. No entanto, segundo Letícia, a atendente disse que o encaminhamento ao hospital dependeria da avaliação do bombeiro quando o mesmo chegasse até a sua residência (requerimento que não pareceu lhe fazer sentido, pois só existe esse hospital e o Santa Maria em sua zona com pedopsiquiatra plantonista).

Além disso, a mãe pontua que o bombeiro não teria capacitação para avaliar a questão e que o próprio SNS poderia ver o histórico de atendimento do seu filho através do sistema. “Acontece que ao dizer que meu filho é um autista agressivo, a atendente deduziu que houve agressão e a polícia também foi acionada. Quando me dei conta, eu estava no meio da rua, na frente de todos os vizinhos, tentando explicar às autoridades que eu não agredi o meu filho.





Batalha perdida

Após toda a confusão, o INEM (Instituto Nacional de Emergência Médica, equivalente ao SAMU no Brasil) não acreditou na versão e acabou levando mãe e filho para o Hospital de Setúbal, pois o Hospital do Barreiro, o mais próximo de sua residência, estava com as urgências encerradas por falta de médicos. Letícia Gurgel também afirmou que o seu namorado, que teria dado todo o apoio e feito vigílias com ela durante os dias mais difíceis, foi impedido pelo bombeiro de acompanhá-los na ambulância.

Chegando ao Hospital de Setúbal, a mineira de 38 anos pontuou que o próprio recepcionista teria recusado a receber o seu filho, pois não havia atendimento de pedopsiquiatra no local, como ela mesma já sabia e havia alertado. Mesmo assim, a mãe relata que eles tiveram que ficar no hospital, já que o bombeiro se negou a levá-los até Lisboa. “Ficava ainda pior conduzir de Setúbal para a capital no nosso carro, já que a distância ficou maior e nós estávamos completamente esgotados”.

Com a urgência pediátrica praticamente vazia, Gurgel diz que o atendimento foi rápido e que a médica duvidou que o seu filho estivesse passando por uma crise. Explicou também que, segundo a pediatra, a pessoa precisaria estar se “debatendo” para que a crise fosse considerada, além de ter contestado a versão de que o jovem estivesse tanto tempo sem dormir. Em seguida, mesmo a mãe tendo afirmado que o garoto tinha tomado cinco calmantes, a médica achou por bem dar o sexto. “Eu questionei do risco disso e ela disse que não colocaria sua carreira em perigo. Relutei, falei que ela poderia informar que não havia pedopsiquiatra de plantão naquele hospital e o encaminhar para Lisboa, mas ela não quis”, detalhou.

Mesmo com mais uma dose de medicação, a mãe reitera que o seu filho não conseguia dormir e que ambos ficaram em uma maca no corredor do hospital. “Por vezes, a médica colocava a cabeça para fora do consultório e perguntava se ele tinha dormido. Ficamos assim até as 5 horas da manhã, quando ele adormeceu”. Depois de muita insistência, a pediatra concordou em pedir a transferência. Entretanto, Gurgel alegou que a solicitação, para que seu filho fosse levado a uma sala de observação enquanto esperavam pela ambulância, também foi negada. 

“Tive que passar a madrugada com meu filho no fundo de um corredor e na porta de uma casa de banho. Não passou nenhum médico ou enfermeiro para observá-lo nenhuma vez e tive que ser eu a não dormir e ficar de vigília. Até porque era impossível pegar no sono, já que se alguém quisesse usar o banheiro, eu tinha que me levantar”, conta com ar de cansaço e revolta.

Mesmo medicado no Hospital de Setúbal o adolescente dormiu por volta de 2 horas e meia apenas. Só durante a manhã de sábado é que ambos foram para Lisboa na tentativa de um atendimento no Hospital Dona Estefânia, mas sem sucesso. Como o seu filho já tinha sido medicado em alta dosagem e já não se encontrava em “estado de surto”, mais uma vez nada foi feito. “Um surto não passa assim. A medicação precisa ser ajustada e isso deveria ser feito em um hospital com observação de profissionais, com a indicação da dosagem certa. Meu filho não foi internado e voltei para casa sem atendimento, além de ter passado por mais um ‘show’ de despreparo e descaso.”





Portugal está entre os países europeus onde mais se paga pelo sistema de saúde 

O número de pacientes sem médico de família em Portugal aumentou 29% no último ano, representando quase 1,7 milhões de utentes. Os dados são do próprio portal de transparência do SNS, que aponta como fatores a falta de médicos, salários insuficientes oferecidos aos profissionais especializados e a altíssima carga horária exigida. Em 2022, um especialista recém formado recebia 16,03 euros por hora, valor considerado baixo em comparação com outros países da União Europeia.

“É preciso lembrar que há 20 anos era a carreira pública dos profissionais de saúde que regulava os valores de mercado destes trabalhadores. Com a não atualização dos salários, os rendimentos ficaram defasados. Hoje, o setor privado consegue atrair os médicos do SNS pagando um pouco mais e oferecendo condições de trabalho melhores, pois fica bem barato recrutar esses profissionais”, explicou um médico especialista em Pediatria Geral no Brasil que atualmente atua em Portugal.

Segundo o profissional, a falta de investimento em manutenção e modernização dos hospitais e centros de saúde também são agravantes que motivam a saída de médicos do serviço público, já que as estruturas que são reformadas ou construídas do zero vão quase sempre para a administração da iniciativa privada. Ele também acredita que a única forma de travar esse êxodo é aumentando os ordenados e melhorando as condições de trabalho para que esses profissionais permaneçam no SNS e não sejam assediados pelo capital privado.

Hoje, os cidadãos de Portugal estão entre os que mais pagam pelo sistema de saúde na Europa. Segundo um estudo feito pela Faculdade de Economia e Gestão da Universidade Nova de Lisboa (Nova SBE), no âmbito do Observatório da Despesa em Saúde, 29% das despesas ficam por conta do próprio paciente no momento do atendimento. Apenas quatro países possuem valores mais elevados do que Portugal: Lituânia, Letónia, Grécia e Bulgária. Os pesquisadores afirmam ainda que esse aumento, em comparação com a média europeia, vem crescendo desde os anos 2000.


Foto em destaque por Diogo Ventura

Brasileira relata sofrer negligência médica com filho autista em Portugal

Por
- Latino-americana, imigrante e jornalista. Twitter: @sttefanicosta