Como selos, festivais, plataformas online e outras iniciativas independentes têm ajudado a abrir cada vez mais portas para artistas e bandas
“Conhece bandas, zines, eventos, coletivos, artistas… produções que sejam realizadas por mulheres do nosso underground? Indique pra gente nos comentários! Ajude a fortalecer as minas do DIY”.
É com esse pedido que a União das Mulheres do Underground (UMU) apresenta sua página no Facebook, que existe há cerca de um ano e tem mais de 9 mil seguidores.
As pessoas mandam as indicações e a partir delas as colaboradoras da página vão alimentando um arquivo com o contato de bandas — todas com uma ou mais mulheres em sua formação. “É que sempre que alguém perguntava sobre a presença de mulheres no metal ou punk, apenas bandas estrangeiras eram indicadas pela galera da cena brasileira”, elas desabafam. “A gente quer fomentar o cenário nacional”.
Recentemente a UMU inaugurou um canal no YouTube, com uma série de entrevistas com mulheres do meio underground. Vale a pena conferir!
Criar uma rede de incentivo à produção e divulgação musical feminina no Brasil não é uma proposta exclusiva das mulheres da UMU. Nos últimos cinco anos iniciativas renasceram ao passo em que novas surgiram. O último é o caso do Hérnia de Discos, localizado no Sudeste, que é um selo exclusivo para materiais de projetos que tenham pelo menos uma mulher como integrante.
“A ideia sempre foi dar espaço a elas, em especial às que não têm oportunidade de gravar num estúdio, com todo o papel sendo gerenciado também por mulheres”, explica Cintia Ferreira que, ao lado de Desirée Marantes, dá vida ao Hérnia de Discos. “Tanto eu como a Desi temos outros trabalhos e projetos, então a gente divide as coisas como consegue”, completa.
É enquanto não estão produzindo ou saindo em turnê com suas bandas que elas dão todo o suporte necessário para que outras mulheres também tenham a chance de ver os seus projetos nascerem (e florescerem). “As minas estão despontando. Esse é o legado. Todas as mulheres estão com seus trabalhos que antes eram invisíveis, na praça, sendo vistos”, afirma Cintia, com convicção.
Álbum lançado pelo selo Hérnia de Discos, que reuniu bandas femininas brasileiras em comemoração aos 25 anos do clássico riot grrrl Pussy Whipped, do Bikini Kill.
O protagonismo é de quem?
Uma das principais razões — que levou as mais de 10 colaboradoras que hoje fazem parte da equipe por trás da UMU e também Desirée e Cintia a se unirem na divulgação e produção de projetos encabeçados por mulheres — é refletida na disparidade de participação feminina e masculina em festivais. Tanto em grandes eventos do mainstream quanto em shows menores, do meio underground.
Uma pesquisa divulgada por um dos maiores portais de crítica musical do mundo, a Pitchfork, envolveu a análise de 20 grandes festivais ao longo dos anos. O resultado: 19% das atrações principais eram femininas. Segundo outra apuração, essa feita pelo jornal The Guardian (que também se baseou em festivais), apenas 270 de 2.336 performances eram de mulheres.
Aqui no Brasil a realidade é a mesma. O site Projeto Pulso observou as atrações de 9 festivais brasileiros, e somente 74 de 741 atrações confirmadas eram de mulheres; o equivalente a menos de 10%!
“Segundo a revista Rolling Stone Brasil, em matéria publicada em 2017, dos 100 maiores artistas da música brasileira, apenas 16 são mulheres. No ano anterior, o festival Lollapalloza contou ao todo com 104 músicos no palco, sendo somente 10 deles mulheres”, dizem as mulheres da SÊLA, outra iniciativa que visa o incentivo às mulheres na música, no texto de apresentação do site.
A equipe da UMU reitera as informações, englobando também os festivais do circuito underground, afirmando que “ainda há invisibilidade e falta de espaço, é só você analisar o line up dos festivais de pequeno médio e grande porte: no Brasil, só 22% contam bandas que contenham pelo menos uma mulher em sua formação”.
Credibilidade e incentivo
Incomodada com essa invisibilidade das mulheres no meio musical, a jornalista e escritora americana Jessica Hopper — que trabalhou em veículos como Pitchfork, Punk Planet, Buzzfeed e MTV News — resolveu provocar o público. Em 2015, postou a seguinte pergunta em seu Twitter (em tradução livre): “Garotas/outros grupos marginalizados: qual foi a primeira vez que vocês foram ‘queimadas’ (na indústria musical, jornalismo ou na ‘cena’) porque a sua opinião não importava?”
A publicação teve milhares de compartilhamentos e as respostas, histórias das mais variadas — e mais bizarras também. “Na minha primeira semana na NME, um freelancer (homem) me disse que eu nunca seria levada a sério porque eu era loira e usava salto alto”, dizia uma delas. “Um fotógrafo durante uma sessão de fotos em um festival me disse: ‘Você precisar chegar para o lado para que os profissionais possam tirar fotos, querida’. Como se eu não estivesse trabalhando também”, desabafava outra.
Experiências parecidas são vivenciadas por mulheres ao redor do globo, e a postagem de Jessica Hopper foi o estopim para que a discussão se ampliasse cada vez mais. Dois anos depois, a brasileira Gaía Passarelli, jornalista musical, explicou em uma entrevista ao portal Popload que, para ela, a diferença no tratamento e credibilidade dados às mulheres foi algo que demorou a perceber — e muito ela deve ao debate fomentado por Hopper.
Em sua opinião, o papel desempenhado pelo homem no meio musical é algo consolidado, oficial. E vai além: “a nossa formação cultural foi totalmente ditada por homens”, explica. “Se você tem algo entre 30 e 40 e lia sobre música nos cadernos de cultura aqui no Brasil, a chance é que você teve a cabeça formada pelas mesmas pessoas que eu. E essas pessoas são homens brancos de classe-média”.
Então sempre que uma mulher resolve participar deste ambiente, tomar para si uma pequena porção deste espaço, ela encontra barreiras muito maiores; é como se aquele não fosse o seu lugar. Por isso é essencial a existência de iniciativas que, como a União das Mulheres do Underground e o Hérnia de Discos, fortaleçam e propaguem as produções femininas.
“Se antes nós dependíamos de abrir espaço na cotovelada entre os colegas homens, (…) hoje os fóruns, conferências e grupos criados de e para mulheres provêm um espaço para troca de experiências e oportunidades”. Ela cita como um dos principais expoentes o Women’s Music Event (WME), uma iniciativa que conta com debates, workshops, shows, premiações, além de uma plataforma online com divulgação de notícias e reportagens.
O WME acontece anualmente na cidade de São Paulo, dando incentivo e prestígio às produções das mulheres em diversas áreas ligadas à música.
Falta mulher no ramo?
Mesmo com tantos obstáculos no meio do caminho, a principal desculpa oferecida por grandes produtores de eventos, quando questionados sobre a falta de mulheres nos line ups, ainda é a de que existem poucas bandas ou artistas em atividade. Ou então eles até admitem que tem, mas argumentam que são de difícil acesso; eles não tem o contato.
As colaboradoras da UMU lamentam ainda que “muitas vezes as bandas masculinas nem são tão boas assim e nesse espaço poderiam estar bandas de qualidade com mulheres, dentro do estilo e na proposta do festival”. Infelizmente, é por comodismo que eles optam por convidar sempre as bandas dos colegas — mesmo que não estejam dentro da proposta do festival. “Nós acreditamos que é importante cobrar esses produtores”.
Para desbancar essa justificativa e dar material para que eles sejam “cobrados”, além da curadoria das informações de bandas que são enviadas para a página da UMU, a equipe dedicou também um certo tempo para produzir um infográfico informando a quantidade e onde estão concentradas as bandas com mulheres ao redor do país.
Foram 400 bandas analisadas, de diferentes estilos e formações; a maior parte localizada no Sudeste (60%), principalmente no estado e cidade de São Paulo. Em segundo lugar vem o Nordeste com 16%, logo após a região Sul com 14%, e o Centro-Oeste e Norte com 5,5% e 4,25% respectivamente. Isso só no underground.
No site do Women’s Music Event elas seguem a mesma linha e vão além: na aba “Profissionais”, é possível navegar por uma lista que contém informações e contato de mulheres que atuam na área musical, desde DJs, produtoras, compositoras, engenheiras de som, até mesmo que atuam na área jurídica. Não tem desculpa: elas estão em todas os lugares. É só contratar.
Uma luz no fim do túnel
Toda essa atuação em benefício da produção feminina tem rendido frutos e, de acordo com a equipe da UMU, uma das grandes provas disso são os ataques que a página volta e meia recebe — “como diz o ditado ‘ninguém atira pedras em árvores secas e sem frutos’”, elas brincam. Perceber que elas incomodam só dá mais gás para continuar firme e forte, prometendo novidades.
Esse combustível é o mesmo para uma série de iniciativas que vêm e vão ao longo do tempo. No meio underground, festivais feministas como Vulva La Vida, Ladyfest, Hard Grrrls, Maria Bonita Fest e UMMA (União das Mina pela Música e Arte) são alguns nomes de peso. Protagonizados por mulheres, contam não apenas com as artistas e as bandas, mas também com rodas de conversa, debates, oficinas e feirinhas para incentivar as produtoras independentes. Muitas vezes estes eventos acontecem em casas como a Motim 302 ou o Brejo das Flores, que são espaços seguros para “troca, coletividade e sororidade”.
Além do Hérnia de Discos, outros selos que se focam nas produções femininas são o PWR Records e o Efusiva. Mulher na Música, We Are Not With The Band, MADREMag e Distúrbio Feminino são exemplos de plataformas com enfoque em coberturas, entrevistas, mini documentários e resenhas de álbuns — todos de conteúdos lançados por artistas mulheres. Garotas Amplificadas e Girls & Ladies Rock Camp, por sua vez, se propõem a ensinar, de crianças a adultas, a tocar os instrumentos, compor e criar música.
Trailer do documentário, lançado no fim de 2017, sobre o Girls Rock Camp
Quando o assunto é o mainstream, outro grande festival como o Women’s Music Event é o Sonora, que está em sua terceira edição em 2018. Foram aproximadamente 200 compositoras participando do evento em 20 cidades de seis países diferentes em 2016. No ano seguinte, o número mais que duplicou, e foi para 15 países e 62 cidades!
E não são apenas os eventos exclusivos que têm dado espaço a elas. Ainda neste ano 46 festivais de música na Europa e nos Estados Unidos se comprometeram a aumentar a participação feminina em edições até 2022. O intuito é que seus headlines, júris e comissões estejam compostos por, ao menos, 50% de mulheres.
Outros festivais já haviam cumprido isto anteriormente. Dentre eles estão Iceland Airwaves, Reykjavik Rock and Electro Festival e The Great Escape em Brighton, no Reino Unido. A iniciativa, chamada de Keychange PRS Foundation, surgiu de forma pontual após inúmeras campanhas denunciando o sexismo na indústria cultural e de entretenimento, e diversos pedidos para maior visibilidade para artistas mulheres.
“Ao ocupar os espaços e mostrar qualidade, as bandas com minas estão ganhando cada vez mais público e mudando a opinião dos produtores”, dizem aliviadas as colaboradoras da UMU. “É um saco [ter que se provar o tempo todo]? É! Mas é importante para uma mudança estrutural”.
A quantidade de eventos mistos ter aumentado é um sintoma desta alteração. “Isso é muito bom”, elas admitem, sem deixar de pontuar que “o mais legal é ver mulheres levando o ‘FAÇA VOCÊ MESMA’ ao pé da letra e produzindo shows, zines, distros, além das bandas”. “A gente cansou de esperar que homens dêem espaço pra gente. A gente tem que ir lá e ocupá-lo”.
Cintia Ferreira, do Hérnia de Discos, concorda com a visão positiva e observa ainda que a mudança se expande também para os bastidores: “Tá crescendo a quantidade de mulheres técnicas de som e produtoras musicais”. “Momentos difíceis estão por vir, mas a nossa força é incontrolável”, ela finaliza, de maneira quase profética.
Texto por Bárbara Alcântara e Beatriz Fanton
Na imagem destacada: Ivy Sumini, vocalista da banda curitibana Naome Rita, em uma apresentação no festival Garotas Uivantes, em Bauru (SP).
Foto por: Beatriz Montanhaur