A misoginia no death metal tem sido praticada ao extremo. Por décadas, as bandas de death metal se concentraram em temas clássicos de filmes de terror com a finalidade de retalhar garotas em seus álbuns feitos para chocar.
Em uma memória mais recente, bandas técnicas e brutais como Devourment, Thy Art Is Murder e Vulvodynia tentaram ultrajar o público com músicas como ‘Fuck Her Head Off’ (‘Foda Com a Cabeça Dela’), ‘Whore to a Chainsaw’ (‘Puta para uma Serra Elétrica’) e ‘Psychosadistic Design’ (‘Desenho Psicosadista’), respectivamente. O título aparentemente benigno deste último é desmentido logo no início da faixa, com sons de um abuso sexual perturbador e uma das letras mais inteligíveis (relativamente falando), que exclamam: “Maldita vagabunda mutilada!”
No entanto, na cena moderna, os principais do gênero – tanto os que já tocaram no problema quanto os que foram afetados por ele – estão mudando essa maré. Muitas bandas, incluindo as listadas acima, não apenas mudaram a sua abordagem nas letras de death metal como também fizeram as ‘novas vozes’ da cena; ao comentarem acerca das nuances de violência representadas em suas músicas.
E por mais repulsivos que sejam o assuntos do death metal, especialmente no brutal death metal, no slam e no deathcore, muitas das ‘pessoas envolvidas com essas músicas’ e que recebem a finalidade do seu desprezo (leia-se: mulheres) acham que caras que escrevem essas letras precisam ter também uma oportunidade de evoluir.
“Bandas que escreviam letras misóginas no passado – você tem que dar a elas um crédito para que cresçam e reflitam sobre o que estavam acostumadas a cantar e falar”, afirma Larissa Stupar, vocalista do grupo galês de death metal Venom Prison. “A maioria deles é composta de pais, crescidos e casados. Eles sabem que fizeram merda.”
Para o Devourment, a mudança teve que ser um pouco mais pontual. Ao longo dos anos, a música dos pioneiros do slam texano se tornou sinônimo de machismo tóxico no death metal – uma ideia que a banda nunca teve a intenção de promover. Parte da mudança dessa percepção foi deixar de se referir aos gêneros (quase que totalmente) em seu novo LP, ‘Obscene Majesty‘.
Até a faixa ‘Arterial Spray Patterns‘ centrada no BDSM evita definir gênero e se refere especificamente ao consentimento. A única do álbum que explora mais o tema, ‘Truculent Antipathy‘ , inverte o tropeço e proclama “misandria detona a misoginia”, em que uma suposta vítima de estupro vira a mesa contra o seu agressor.
Ruben Rosas, reprisando seu papel como vocalista do Devourment pela primeira vez desde o LP ‘Molesting the Decapited‘ de1999, explica: “A música é realmente sobre o fato de que as mulheres são tão loucas quanto os homens, dadas certas circunstâncias. Se você ler a letra, verá no final que a mulher na história foi molestada e abusada quando criança e se tornou essa porra de psicopata.”
Devourment é uma banda de 1995 e, como tal, assistiu ao death metal mudando ao longo das décadas. Os membros que falaram com a Kerrang!, o baterista Brad Fincher e o guitarrista Chris Andrews, além de Ruben, expressaram pesar pelas letras passadas, apesar de não terem sido eles necessariamente que as escreveram (essa ‘honra’ é atribuída ao ex-baixista e depois ex-vocalista também, Mike Majewski).
Devido à sua posição como único músico que esteve lá desde o início, Brad fornece algumas dicas sobre a ascensão que levou o death metal brutal a realmente abraçar seu prefixo: “Acabou se tornando uma espécie de ‘corrida armamentista’, porque todos estávamos tentando extrapolar o extremo um do outro, e acho que foi daí que muito disso nasceu. É tipo: ‘Ah, esses caras são nojentos. Vamos então tentar ser ainda mais doentios, gráficos e ofensivos em relação a isso!'”
Um espelho virado ao Devourment, que fez com que a identidade da banda fosse reconsiderada, foi um artigo da VICE que a listou entre algumas das mais ‘violentas’ e misóginas do death metal.
Chris Andrews admite que a sua primeira reação foi revolta, mas depois que as emoções cessaram, ele se tornou mais reflexivo sobre o que levou o seu grupo a ser incluído em uma lista tão negra.
“Isso meio que fez a coisa tomar uma proporção ainda maior“, contou Chris. “O fato é que realmente não acreditamos nessas ideias e as tornamos um fetish ou algo assim. Se continua-se a insistir nisso, obviamente não está escrevendo um filme de terror chocante, está apenas pressionando o botão da misoginia repetidas vezes. Por que fazer isso?”
Para o Vulvodynia, a mudança foi mais da fantasia para a realidade – ou pelo menos da realidade fantástica de outra pessoa a do grupo. O vocalista Duncan Bentley admite que o foco sexualmente violento do último álbum nasceu devido a pessoas os acusando de não serem ‘slam’ de verdade, fazendo com que a banda se dobrasse e escrevesse cada música através dos olhos de um serial killer diferente. Porém, seu mais recente lançamento, ‘Mob Justice‘, é focado na vida em seu continente natal, a África. Já ‘Misogyny Cultural‘, o penúltimo lançamento, examina a prática bárbara da mutilação genital feminina, enquanto também enfrenta a misoginia aprendida através da sociedade.
Duncan revela outro motivo para a mudança: “Vimos pessoas gritando a letras de volta nas nossas caras, e sentimos que precisávamos nos voltar para algo que significava mais para as pessoas e para nós mesmos, algo que chegasse melhor até em nossa casa. Então pensamos: ‘o que é mais brutal do que as tantas coisas acontecendo em casa?”
A fantasia muitas vezes forneceu uma fuga para o death metal, mas isso se tornou uma brecha para se apoiar fortemente em visões misóginas. O amor pelos temas dos filmes de terror da velha escola costuma ser usado para desculpar letras violentas. Mas, à medida que a sociedade reconhece cada vez mais a verdade sobre agressão sexual e misoginia, e como muitos filmes de terror clássicos envelhecem mal durante ao longo de suas reprises, muitos músicos sabem que relativizar isso é fugir da responsabilidade.
“Já houve álbuns de death metal suficientes com tais temas, com essa vibe de filme de horror”, reforçou Duncan. “Somos uma nova geração agora, na qual deveríamos abolir esse tipo de pensamento e esse tipo de letra, porque ainda espalham um ponto de vista negativo.”
Parte dessa mudança envolve uma oportunidade igual de abordar sobre fantasias violentas. A vocalista do Abnormality , Mallika Sundaramurthy, feito guturais bruscos e incisivos, em letras como “Crush and cut the balls”, no seu projeto paralelo e totalmente feminino, Castrator. A faixa em questão é apropriadamente intitulada ‘The Emasculator‘, mas ela também foi rápida ao apontar: “Acho que não é só uma questão de ‘preto no branco’, esse é o meu ponto; e ele é cinza.“
A Venom Prison também tem uma narrativa de vingança de estupro em sua faixa ‘Perpetrator Emasculation‘ , e também olha para o futuro. Esse consenso é ainda mais poderoso, considerando que ambas mulheres sofreram algum tipo de assédio ou agressão sexual.
O ato australiano de deathcore, Thy Art is Murder, abordou conceitos errôneos sobre violência sexual em ‘Atonement‘, do mais recente LP ‘Human Target‘. A faixa foi a mais direta que a banda já fez sobre o assunto desde que deixou de utilizar o sofrimento das mulheres como forragem lírica em ‘Hate‘ (de 2012), carregado com temáticas políticas. O guitarrista e letrista Andy Marsh foi o catalisador dessa mudança.
“Um dos primeiros movimentos que fiz quando entrei para a banda foi redirecionar as coisas do ponto de vista estilístico”, explica Andy. “Eu pensei, qual é o sentido de se ter letras tão desconexas? Eu compreendo essa cultura chocante e violenta, a liberdade de expressão, o Cannibal Corpse e todo esse tipo de coisa… Mas, para mim como letrista e fã de música, eu gosto que as coisas sejam muito mais relacionáveis. Eu sempre relutei ao me relacionar com fantasias ‘gore’, talvez seja por isso que não entro tanto em filmes de terror.”
Essa mentalidade imatura poderia explicar por que estamos passando por uma segunda onda assim com o advento do deathcore, um gênero que misturou death metal e metalcore e compartilhou a obsessão da morte brutal por uma violência indescritível, muitas vezes contra as mulheres.
“Não tenho certeza se essa foi só uma marca de 11, 12 anos atrás, com o surgimento do deathcore e jovens adolescentes tentando escrever música agressiva”, diz Andy. “Essas coisas eram o que ficavam populares ou fáceis de causar impacto, porque eram muito chocantes.”
Mais do que apenas um ponto de vista negativo, as palavras podem realmente afastar pessoas que de outra forma poderiam ser fãs de death metal.
Larissa, nascida na Alemanha, descobriu o death metal antes de entender a letra, pois a sua primeira língua não era o inglês. Seu relacionamento com a música mudou ao lado de uma melhor compreensão do que estava sendo dito.
“Eu estava interessada no que as bandas estavam cantando. Realmente não sabia quando era mais jovem”, ela disse. “Quando eu notei, foi realmente perturbador.”
Larissa realmente se afastou do death metal por um tempo e começou a liderar bandas no hardcore. Essa cena permitiu que ela se expressasse de maneiras que talvez não fosse capaz no death metal.
Mallika do Abnormality especificamente não violou o feminismo liricamente (quando ela formou o grupo em 2005) por duas razões principais: “É muito difícil de ser vista como alguma coisa além de um objeto sexual. Ainda é uma luta exigir apenas o respeito básico, simples e ser tratada como uma musicista. Para lidar com essas questões mais profundas, acho que seria confrontada com muita oposição. Mas, na verdade, com o Castrator, conseguimos bastante apoio. Isso realmente me surpreendeu. O mundo mudou muito nessas décadas, em um bom sentido. Estar na cena do death metal em si foi uma rebelião, muito menos do que tentar mudar a opinião das pessoas sobre as coisas.”
“Infelizmente, nós mulheres, temos que lidar com muito disso na vida real”, acrescenta Mallika. “Algumas citações que ouvi foram como ‘bata em cima, não embaixo’. Por que você dificultaria para as pessoas vulneráveis? Por que não criticar pessoas privilegiadas?” Mallika continua sugerindo um bom alvo: políticos que fomentam a misoginia e mostram apatia pelas pessoas comuns, como um todo.
Esse sentimento é um dos que o death metal abraçou: os verdadeiros monstros do mundo querem que todos nós falhemos, independentemente do sexo. Isso promoveu um senso de solidariedade que nunca se poderia ter visto no gênero anteriormente. Após mensagens constantes questionando sua escolha de nome, o Vulvodynia fez camisas e doou partes de seus lucros à National Vulvodynia Association, uma organização sem fins lucrativos que ajuda a melhorar a vida das mulheres que sofrem o que o nome da banda significa; vulvodínia: ardência e dor na região genital feminina (especificamente, como o próprio termo indica, na vulva).
Felizmente, por tudo isso, o futuro do death metal brutal e do deathcore pode ser um lugar mais acolhedor para as mulheres. Sobre o tema, Chris Andrews, do Devourment, é tão brutal em sua honestidade quanto em sua música:
“Se você está escrevendo música em 2019 sobre o quanto você odeia mulheres, já não vai mais passar só como uma mera representação de algo”, afirma ele e complementa: “Parece que esse é o seu próprio fetiche mesmo!”
Por Bradley Zorgdrager
Originalmente publicado no site da Kerrang! Magazine
Tradução: Fernando Araújo