Há vinte anos, neste preciso dia, os Sepultura lançavam Nation, um álbum incompreendido e rejeitado por muitos, que teve o ‘azar’ de ter sido editado numa altura em que a separação de Max Cavalera permanecia uma ferida demasiado aberta na comunidade do heavy metal, mas que oferece uma escuta incrivelmente entusiasmante para quem o escolhe explorar sem preconceitos e assim saborear este vasto caldeirão de sons.
‘Sepulnation‘ abre o disco e a escolha não podia ter sido mais acertada – é empolgante, enérgica, quase um grito de guerra, o hino que identifica esta nação emergente -, ao passo que ‘Revolt’ constitui um feroz e visceral manifesto hardcore, curto e direto na maneira como destila a sua fúria. Já ‘Border Wars’ tira o pé do acelerador e convida-nos a mergulhar em ambientes mais lentos, mas nem por isso menos apaixonados e ardentes. Na verdade, a forma impetuosa como Derrick Green canta “No! No! It won’t be this way! No! No! Can’t be their way!“ durante o refrão, arrepia a alma. Parecem frases berradas numa qualquer manifestação pelos direitos humanos, algo que podia perfeitamente ter sido proferido nos recentes protestos de apoio ao movimento Black Lives Matter.
O nível de indignação é assustadoramente próximo dos gritos de revolta que ecoaram um pouco por todo o mundo após a brutalidade sofrida por George Floyd. A comparação fica ainda mais poderosa quando pensamos que Derrick é negro e já conviveu diretamente com episódios de racismo. No fundo, mesmo não tendo em mente o referido movimento – até por ter sido composta numa altura em que este ainda nem sequer existia -, ‘Border Wars’ é das mais políticas faixas de um disco recheado de mensagens em prol de uma sociedade mais digna e livre, em que a corrupção é derrubada para dar lugar a um clima de paz, justiça e compreensão mútua; como canta Derrick, cheio de força e convicção: “The walls that we build we are taking them down.”
Nesse sentido, Nation é, muito possivelmente, o álbum mais político dos Sepultura desde o mítico Chaos A.D. ( aliás, Jello Biafra, que nessa época escreveu as letras para o clássico ‘Biotech Is Godzilla’, volta aqui a juntar-se ao coletivo brasileiro para contracenar com Derrick em ‘Politricks’), com a diferença, no entanto, de se alimentar menos de um incontrolável sentimento de raiva e optar por um registo entre a resistência e a esperança – é mais humanitário e idealista, mas nem por isso menos intenso, na forma como luta pela mudança que quer, desesperadamente, ver implementada. Há a denúncia de uma frustração há muito acumulada (“We are tired of being denied/ We are sick of being sick”), mas também se vislumbra uma certa confiança, ou fé, num possível futuro pacífico, se o quisermos efetivamente construir (“Uma cura existe”, exclamam a determinada altura).
Contudo, a utopia por um mundo melhor também se reflete na própria sonoridade, pois este é um disco onde a banda assume todas as suas influências e celebra uma espécie de ‘democracia’ musical, delineando um imaginário onde o encanto de diversos universos sonoros é celebrado de forma honesta e igualitária. Esse ecletismo já vem de longe, dos tempos em que as influências do Brasil que os viu nascer começaram a conviver com o metal de raiz, mas foi ficando mais forte com o passar dos anos – veja-se Against, de 1998, em que o grupo viajou até ao Japão para absorver a beleza transcendente das percussões dos Kodo -, até, eventualmente, atingir um período áureo neste trabalho.
Por isso mesmo, é que escutamos metal, hardcore (não só na mencionada ‘Revolt’, como na potentíssima ‘Human Cause’, com a participação de Jamey Jasta, dos Hatebreed), mas também melodias de sabor oriental em ‘The Ways of Faith’, aventuras pelo universo do dub e do reggae, cortesia de Dr. Israel, em ‘Tribe to a Nation’, sensibilidade melódica de tons tribais na contemplativa ‘Water’ ou cruzamentos com a música clássica em ‘Valtio’, gravada com os finlandeses Apocalyptica.
Apesar de tudo, Nation não é um álbum perfeito e mostra uma banda a atravessar um inevitável processo de autodescoberta, a reconstruir-se após a queda provocada pela saída de Max, podendo-se mesmo afirmar que é, claramente, menos coeso que obras posteriores como Machine Messiah ou Quadra. Todavia, encanta graças ao espírito de paixão, perseverança e luta que orgulhosamente exibe, sendo, também aqui, que Derrick começa lentamente a deixar a sua marca (o próprio registo vocal, que vai muito além do simples berro e inclui vozes limpas ou graves, é exemplo disso) e onde os Sepultura de tudo fazem para tentar criar uma segunda era dourada.
Não o conseguiram, já que muitos não estavam prontos para acolher a formação atual (inclusive a Roadrunner, que lançou o disco) e o nível de experimentalismo era demasiado elevado para ouvidos mais conservadores. Porém, talvez agora possamos voltar atrás e dar algum carinho a um álbum que nunca o obteve realmente…
Assim sendo, urge despedirmo-nos com estas memoráveis palavras de ordem: “Rise, rise, sepulnation!“