Erradicar as continuidades coloniais é urgente: carta aberta ao Lula

Carta Aberta2022 – 2026 e adiante:
Erradicar as continuidades coloniais bilateralmente e transnacionalmente, é urgente, profundamente necessário.


Por: Rita Cássia Silva

Exmo. Companheiro, Luiz Inácio Lula da Silva, futuro Presidente do Brasil,
Um bom dia, uma boa tarde e uma boa noite.

Escrevo-te esta carta, porque considero ser este o momento fundamental para que haja mais reflexões individuais e coletivas, sobre como práticas coloniais como o racismo e a xenofobia interseccionadas com outras discriminações (raça / género / classe social / religião / opção sexual) manifestam-se fora do Brasil e sobre como poderemos combater eficazmente, bilateralmente e transnacionalmente, tais violações de direitos humanos e reproduções sociais de violências do outrora.

O seu posicionamento público em prol da construção de um mundo sem racismo, através do Twitter, em 31/7/2022, quanto as violências racistas e xenófobas que foram desferidas contra duas crianças negras irmãs, Titi (Chissomo) Ewbank Gagliasso e Bless Ewbank Gagliasso, de 9 e 7 anos de idade, os atores Giovanna Ewbank e Bruno Gagliasso, família de nacionalidade brasileira e contra um grupo de pessoas de nacionalidade angolana, negras, em 30/7/2022, na Costa da Caparica, no Restaurante Clássico Beach Club, por parte de uma mulher branca, de nacionalidade portuguesa, é profundamente significativo para Portugal. Em primeiro lugar, porque Portugal trata-se de um território que foi construído por diferentes culturas. Em segundo lugar, porque as comunidades formadas por pessoas africanas e por pessoas afrodescendentes portuguesas, tendem a continuar sofrendo quotidianamente as mais vis manifestações de racismo, interseccionadas com outras discriminações. Em terceiro lugar, porque a comunidade brasileira é a principal comunidade residente no país, atualmente constituída por mais de duzentas e quatro mil pessoas e tem vindo a combater o racismo, a xenofobia e a discriminação de género através de contínuas denúncias institucionais e públicas. Embora muitas destas denúncias quando feitas institucionalmente, ainda não estejam a ser devidamente tratadas com o rigor necessário, por parte das instituições portuguesas.

Frases como “Voltem para a África”, “Voltem para o Brasil” e “Portugal não é para vocês”, que foram proferidas pela pessoa agressora contra Titi, Bless e família e o grupo de pessoas angolanas negras, são frases absolutamente rotineiras em Portugal. São proferidas por pessoas que desconhecem por completo o verdadeiro passado histórico português e, europeu. Ou que conhecendo, preferem viver o negacionismo, porque lhes dão mais jeito para a manutenção dos seus privilégios e o auto-controle dos seus medos. Muitas destas pessoas tendem a preferir não compreender que Portugal e outros territórios europeus só prosperaram financeiramente, tecnologicamente e culturalmente, porque existiram territórios brasileiros e africanos que foram espoliados secularmente.

Acredito que a educação, através da comunicação é a chave para que possamos cocriar outros mundos possíveis, onde a linguagem do afeto, possa superar as limitações humanas em suas sedes para a manutenção de continuidades coloniais que apenas potencializam misérias, violências, doenças e pobreza, tanto espiritual, como material.

No que diz respeito às Crianças brasileiras, que vivem em Portugal, tendo nascido em Portugal ou no Brasil, muitas têm sido separadas totalmente ou parcialmente das suas Mães, quando são vítimas de violências domésticas e/ou violências institucionais e ainda em casos onde as Crianças sofreram algum tipo de abuso sexual. Há inúmeros casos onde cidadãs brasileiras/Mães, com ou sem duplas nacionalidades, têm sido acusadas em Portugal, por parte de homens agressores e por parte de pessoas profissionais que trabalham em diferentes instituições portuguesas (que deveriam de ser eticamente competentes), de serem “alienadoras parentais”, “desequilibradas psicologicamente”, “sem higiene”, “brasileiras”, “macumbeiras”, “mentirosas”, “sem inteligência”, “pobres”, “maltratadoras”, “lésbicas”, entre outros estratagemas coloniais. Muitas Mulheres/Mães ficam impossibilitadas de regressar às suas terras de origens, devido ao medo de perderem totalmente os seus filhos e filhas e vivem subjugadas a diferentes formas de violências, a espera de que as Crianças cresçam para que possam recuperar as suas autonomias. Muitas perdem toda a alegria de viver e regressam ao Brasil. Outras suicidam-se ou tentam o suicídio. Estas realidades não entram para as estatísticas de violências de género. Cidadãs brasileiras, Mulheres/Mães e Crianças vivenciam igualmente estas torturas em outros territórios europeus, bem como, norte-americanos.

Devido a existência da Lei de Alienação Parental no Brasil, Crianças brasileiras, portuguesas e de outras nacionalidades estão a tornar-se órfãs de Mães vivas, também em Portugal, uma vez que costuma-se importar do Brasil pseudociências como a falsa Síndrome de Alienação Parental e as Constelações Familiares.

No Brasil, a Lei Maria da Penha que visa salvaguardar e proteger as Mulheres contra violências machistas e que completou recentemente 16 anos, é extensiva aos filhos, no entanto, vem sendo impedida de ser aplicada, através da Lei de Alienação Parental. O Brasil é neste momento, o único país “democrático” do mundo, onde mulheres e crianças podem sofrer violências machistas e institucionais legitimadas através de uma Lei. A “Alienação Parental” (uma síndrome inventada na década de 90 por um psiquiatra norte-americano, Richard Gardner, que suicidou-se para não ser preso pela CIA) está a ser tratada no Brasil como uma patologia. No entanto, tal síndrome não é reconhecida pela American Medical Association, nem pela American Psychological Association e não consta como um transtorno psiquiátrico, do Manual de Diagnóstico e Estatística (DSM), da American Psychiatric Association. Mas vem sendo lecionada em Universidades brasileiras que legitimam a sua existência. Constata-se através de Organizações civis no Brasil, que somente nas regiões sul e sudeste, mais de 5.000 mulheres têm sido vitimizadas por causa da vigência desta Lei, perdendo radicalmente às guardas dos seus filhos e das suas filhas.

As Mulheres imigrantes brasileiras trabalhadoras em Portugal desenvolvem-se em diferentes setores profissionais. Na prestação de serviços ao próximo, como a tomar conta de pessoas idosas portuguesas que foram radicalmente abandonadas por suas famílias ou que não têm famílias, dando-lhes atenção e afeto, cuidando-lhes da saúde. Na restauração e na hotelaria, na gastronomia, na administração de empresas, na estética e bem-estar, na medicina, na investigação científica, nas artes performativas, na indústria audiovisual e no cinema, no artesanato, na moda, na criação literária, nas belas artes, entre vários outros setores. Colaboram para o desenvolvimento social, económico, cultural e educacional do país, contribuem financeiramente para a Segurança Social Portuguesa, que nos últimos 10 anos, obteve um lucro de 5, 2 mil milhões de euros, por parte das contribuições de todas as pessoas trabalhadoras imigrantes.

Embora não tenhamos a perceção quantitativa sobre Mulheres/Mães brasileiras que estão a ser vítimas de violências domésticas e de violências institucionais, em Portugal, nas últimas décadas, temos perceções qualitativas das suas existências, uma vez que há denúncias que vêm sendo feitas institucionalmente, em associações civis, ONG’s, nacionais e internacionais.

As descrições de vivências que partilharei abaixo com o Companheiro Lula, narram como algumas Mulheres/Mães, cidadãs brasileiras, têm tido as suas maternidades ceifadas em território português, passando a viver mortas em vida, devido às negligências institucionais (Portugal/Brasil).

Há cinco anos atrás, uma cidadã brasileira, carioca, formada em magistério, grávida, foi perseguida por uma pessoa profissional antiética da assistência social portuguesa, que lhe retirou a sua primeira filhinha e colocou-a numa instituição de acolhimento de crianças. A pessoa antiética teve como base para o seu hediondo procedimento, uma denúncia anónima altamente discriminatória que foi intentada contra a Mãe. Sem uma devida comprovação de fatos, a pessoa antiética escreveu relatórios caluniosos, que culminaram na privação materna entre Mãe e filha, em tenra idade. A pessoa agressora torturou intensivamente a Mãe gestante, com ameaças, de modo que a Mãe teve o seu bebé prematuramente, aos sete meses de gestação. Após toda a tortura que foi imposta à cidadã brasileira/Mãe, durante o período do pré-parto, durante o parto e ainda após o parto, com muita luta conseguiu com que todas as calúnias caíssem por terra e a pessoa agressora foi desmascarada institucionalmente. A criança que estava institucionalizada indevidamente, foi entregue de volta ao seio familiar e não retiraram a criança nasciturna da sua Mãe e família. O Estado Brasileiro, através do Consulado Geral do Brasil em Lisboa, foi devidamente informado sobre tal situação e nada fez para interceder junto às instituições locais, a fim de apoiar as vítimas. A Mãe vítima contou com uma rede de apoio civil. E com o apoio de pessoas profissionais éticas em Portugal.

No entanto, no mesmo período, a mesma sorte não teve uma cidadã brasileira, paranaense, que estudou jornalismo. Tendo sido vítima de violência doméstica, com um processo-crime aberto, foi acusada pelo seu agressor, de tentar sequestrar o seu próprio filho, foi expulsa de casa com a presença de força policial e no mesmo dia, teve o seu filho, ainda em tenra idade, retirado dos seus braços e levado para outra localidade. A Mãe perdeu posteriormente a guarda da criança, devido ser “brasileira”, “de favela” ou “empresária” e pelo fato do magistrado conhecer o pai da criança há mais de 20 anos. A acusação de sequestro de menor que foi feita contra a Mãe, não foi devidamente comprovada. A cidadã brasileira pediu apoio ao Estado Brasileiro em diferentes instituições, tendo inclusive se deslocado ao Brasil para o efeito, uma vez que em Portugal, as Entidades competentes não lhe auscultaram devidamente, mas o Estado Brasileiro não lhe deu nenhuma resposta eficaz. A Criança está a crescer longe da sua Mãe. A Mãe continua a ser perseguida.

Também não teve sorte uma cidadã brasileira, mineira, atualmente empresária, que tendo sido vítima de violência doméstica, separou-se do seu agressor para salvaguardar os seus filhos e a sua integridade e num belo dia, quando estava a ir buscar a Criança pequenina à creche, recebeu uma ligação de técnicas superiores da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, a dizer-lhe que voltasse para casa, porque a Criança já não estava na creche e que seria entregue aos avós. A Criança ainda estava a ser amamentada. A Mãe foi acusada de estar “mal psicologicamente” e de “trabalhar de mais”. Após muito ter lutado, esgotada, retornou ao Brasil, na esperança de obter ajuda junto ao Estado Brasileiro. Não conseguiu. A Criança reside em Portugal, como se fosse órfã de Mãe viva.

Entre 2003 e 2016, duas cidadãs africanas, Mulheres/Mães, a fim de cuidarem da saúde dos seus filhos, vieram a Portugal, ao abrigo de Acordos de Saúde entre os seus países de origens e Portugal. Ambas foram maltratadas através de procedimentos racistas, por parte de profissionais da assistência social e as suas famílias foram destruídas, porque separaram-lhes dos seus filhos. As Crianças foram enviadas para instituições de acolhimento de crianças e as suas Mães não mais puderam regressar aos seus países de origens e reencontrar as suas famílias nucleares. Elas lutaram, denunciaram as violências sofridas institucionalmente, mas nunca foram devidamente auscultadas. Uma das Crianças foi enviada para uma adoção sem o consentimento da sua Mãe.

Mulheres/Mães portuguesas, africanas e brasileiras têm vindo a denunciar junto ao TEDH (Tribunal Europeu dos Direitos Humanos) práticas de separações familiares, entre Mães e Filhos, decorridas em Portugal nas últimas décadas. Durante os passados anos de 2020 e de 2021, com a vigência da pandemia provocada pelo vírus SARS-CoV-2, Crianças e Mulheres/Mães, muito agonizaram sem respostas aos seus pedidos de socorro.

Devido a uma alta incidência de diferentes casos de violências contra pessoas brasileiras, crianças e adultas, em Portugal, nos últimos anos, tendo vindo a ser denunciadas publicamente, através dos meios de comunicação, penso que os Consulados Gerais do Brasil em Portugal e no exterior, devem passar a ter condições jurídicas e condições financeiras para que possam contratar os recursos humanos que forem necessários e custear os recursos materiais, a fim de que o Estado Brasileiro possa vir a dar o acompanhamento junto às instituições locais, às cidadãs e aos cidadãos brasileiros no exterior.

Nenhuma Mulher/Mãe brasileira em Portugal e no exterior, vítima de violências de género e de violências institucionais, deverá passar pela tortura de ter os seus filhos e filhas retirados dos seus braços. Para os casos dramáticos em que Mulheres/Mães e Crianças não estejam com condições financeiras para permanecer em Portugal ou em outros países de acolhimentos e que não tenham familiares e redes de apoios por perto é fundamental que as mesmas possam regressar ao Brasil para perto dos seus familiares e que possam aguardar pelos julgamentos dos seus processos, sendo devidamente assistidas pelo Estado Brasileiro. Segundo o Banco Central do Brasil, entre Janeiro e Setembro de 2021, cidadãs brasileiras e cidadãos brasileiros pelo Mundo enviaram para o Brasil através de transferências, 15, 9 bilhões de reais. Muito deste dinheiro que chegou ao Brasil, certamente foi fruto de esforços laborais individuais, por vezes desumanos. Quando as instituições dos países de acolhimentos falham, perante pessoas vítimas de violências, o Estado Brasileiro não pode igualmente, falhar.

Urge o restabelecimento de diálogo entre Brasil e Portugal, a fim de que o Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta, assinado em 22 de Abril de 2000, em Porto Seguro – Bahia, entre a República de Portugal e a República Federativa do Brasil, possa ser revisto. É fundamental que haja a inserção de uma cláusula referente à Cooperação para a Salvaguarda dos Direitos Humanos de Mulheres e de Crianças sempre que estejam a viver situações de violências domésticas, de violências sexuais e/ou outras violências institucionais, incluindo as práticas coloniais do racismo e da xenofobia interseccionadas com outras discriminações, a discriminação de género – privação materna institucional, o assédio sexual, a discriminação religiosa, a discriminação contra a opção sexual das Mulheres, a discriminação quanto a identidade de género, a aporofobia (discriminação pelo fato das Mulheres estarem a vivenciar situações de pobreza), o tráfico humano, o capacitismo.

Companheiro Lula, as práticas coloniais do racismo e da xenofobia interseccionadas com outras discriminações vão além de frases que dilaceram a alma, que não educam e que matam, dado que também separam famílias, nestes tempos em que vivemos. Compreendo que se a colega atriz e também influencer digital Giovanna Ewbank, Mulher/Mãe brasileira, considerada uma Mulher branca no Brasil e considerada aos olhos eurocêntricos, uma Mulher que integra grupos sociais que foram racializados historicamente, fosse uma Mulher/Mãe Negra brasileira, africana ou afrodescendente portuguesa, o que aconteceria provavelmente na situação em que foi violentada com os seus filhos, marido e amigos, é que seria acusada de ser uma Mulher “agressora”, uma Mulher “sem educação”, “desequilibrada psicologicamente”, “perigosa socialmente”, um “monstro”, “autista”. Que é precisamente o que acontece com Mulheres/Mães Negras, que defendem os seus filhos contra seres humanos racistas em Portugal. São acusadas de serem “autistas”, “mal-educadas”, entre outras barbaridades, são humilhadas e desacreditadas em suas falas. E se a Giovanna fosse uma Mulher Negra, com poucos recursos financeiros, provavelmente ainda arranjariam um modo para justificar as retiradas dos seus filhos, alegando que estariam a correr “perigo”. São muitos os tecnicismos coloniais que, infelizmente, ainda existem em Portugal. Tais tecnicismos têm de ser devidamente denunciados publicamente nas mídias alternativas, nas mídias mainstream e institucionalmente.

Se queremos mesmo um mundo sem racismo, sem xenofobia e sem outras discriminações interseccionais, devemos tratar da erradicação da prática de privação materna institucional. Crianças necessitam de crescer saudavelmente, sem traumas provocados por mundos adultocêntricos e ideologicamente equivocados. Mulheres necessitam de viver em paz, com alegria e saúde, com autonomia.

Aconselho-o a auscultar a série de 5 performances radiofónicas que produzi e dirigi no ano passado (Projeto Epifanias Artes: Audioblogue com e para pessoas que sonham igualdade), estando atento às falas das Mulheres que foram vitimizadas por esta prática nefasta, bem como, às falas das personalidades relevantes que integram a CPLP, nas Lives que foram transmitidas após as estreias de cada uma das performances. Bem como, proceder à leitura do relatório. Necessitamos de auscultar as Mulheres Vítimas destas violências coloniais atrozes. Necessitamos de trabalhar em conjunto, a sociedade civil e a governança, porque só assim haverá erradicações de práticas que nos impedem de cocriar justiça social, equidade social.

Que a sua nova governação traga-nos esperança através de acordos políticos bilaterais e transnacionais que sejam efetivados para que violências coloniais contra Crianças e contra Mulheres que integram grupos sociais que foram racializados historicamente e consequentemente, Crianças e Mulheres no geral, passem a ser devidamente erradicadas no Brasil, em Portugal e em outros países, nos anos que se seguirão.

Um forte abraço e muita Luz e Proteção no seu Caminhar e nos Caminhares de todxs que lutam pela vigência do Estado de Direito Democrático no Brasil.

Rita Cássia Silva

Referências: https://www.epifaniasartes.com/assets/relatorio-epifanias-artes.pdf

Imagem em destaque: Lula em Madrid, 2021 – Foto: Stefani Costa

Erradicar as continuidades coloniais é urgente: carta aberta ao Lula

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