O escritor Itamar Vieira Junior esteve em Berlim como parte de um evento organizado no mês de dezembro pela Embaixada do Brasil em Berlim. Tivemos a oportunidade de bater um papo com ele durante essa breve passagem pela Alemanha.
Itamar Vieira Junior é geógrafo de formação e também colunista do jornal Folha de S. Paulo. É servidor público do INCRA, órgão estatal responsável pela condução da reforma agrária no Brasil. Nesse posto, já recebeu ameaças de morte e outras violências por conta da sua atuação para uma divisão mais justa da terra, além da proximidade com povos Quilombolas.
Seu último romance, Torto Arado, é um sucesso no Brasil, com mais de 200 mil cópias vendidas desde seu lançamento, em 2019. A obra já conquistou alguns prêmios literários bem importantes, como o Jabuti, o Oceanos e o Leya (este último em Portugal). A partir dai, também teve seus direitos vendidos na Itália, México, Peru, Colômbia, Eslováquia, Bulgária, Croácia, França, Alemanha e Estados Unidos.
A aceitação do público internacional é tão grande que a obra teve uma adaptação para o teatro na Áustria e outra para uma série que já está sendo produzida pelo streaming HBO Max. A produção contará com, pelo menos, três temporadas comentadas.
O romance ambienta-se num assentamento de trabalhadores sem-terra remanescentes do regime escravista no sertão baiano, onde as duas irmãs, Bibiana e Belonísia, levantam sua voz contra o sistema e assim mudam o rumo da história, fazendo uma homenagem às populações negras rurais do Brasil através do combate, da redenção e de temas como escravidão e disputa pela direito à terra.
Recentemente, o livro voltou aos holofotes por uma publicação de Lula nas redes sociais. No texto, ele recomendou a leitura do livro e disse ainda que teve a oportunidade de ler a obra enquanto esteve preso injustamente por 580 dias na Superintendência da Polícia Federal, em Curitiba. O presidente do Brasil também declarou ter se tornado fã de Itamar.
Na Alemanha, a obra foi traduzida com o nome de ‘Die Stimme meiner Schwester’ (A voz da minha irmã) e a ocasião da versão fez com que o autor fizesse o que ele chamou de ‘turnê europeia’. Como parte de um programa cultural promovido pela Embaixada do Brasil em Berlim, que teve apoio da tradutora da obra, Bárbara Mesquita, tivemos uma leitura de alguns trechos do livro pelo autor, seguido de uma conversa.
Participar de uma leitura com o próprio criador de uma obra é um evento especial e rico por si só. Levar uma história brasileira tão importante para outras partes do mundo é de extrema relevância, principalmente com as falas de Itamar e as explicações trazidas por quem a criou.
Explicar o contexto em que essas histórias se passam e o valor social delas têm um peso histórico grandioso para a cultura brasileira, principalmente num momento tão delicado onde o país vive. Ter sua voz contando sobre nossa riqueza, peculiaridades e representatividade é muito importante e só podemos agradecê-lo por se empenhar nesse papel.
Abaixo alguns trechos transcritos do bate-papo que tivemos com Itamar Vieira Jr:
– Sobre a história do livro
“Tratando-se de uma história ancestral que nos acompanha há séculos, esse romance foi escrito a partir do meu tempo. E o que percebo ao longo desse tempo trabalhando no Maranhão e na Bahia, é que as mulheres ocupam uma posição de destaque nessas comunidades.
Conhecemos o Brasil, um país com grande desigualdade e é uma desigualdade que também pode ser de gênero. É um país machista onde os homens ocupam essa posição de poder. Se olharmos hoje para a esplanada dos ministérios, para o parlamento, a maioria é formada por homens e não precisa nem falar que além de homens, são pessoas brancas que ocupam esses lugares num país que é multicultural, multiétnico e que não se vê representado nessas instâncias de poder.
Em contraposição, nesses locais onde a vida pulsa e acontece, as mulheres ocupam esse papel de liderança. Eu me perguntei o porquê e às vezes são pelas contingências da vida mesmo. Os homens migram pra outras fazendas para poder trabalhar e as mulheres ficam. Os homens tendem a morrer mais cedo num ambiente de violência também. Mas elas estão ali, cuidando e formando lideranças, representando essa resistência que desperta com grande força no nosso tempo. Essa é a explicação para que essas personagens que protagonizam essa história, que narram essa história, sejam mulheres.”
– O direito à terra
“Temos sinais positivos vindos desse novo governo. O mais importante é que a gente conheça e saiba que esse é um problema secular que nos acompanha há muito tempo e que será dificilmente esgotado nesses quatro anos. Mas, que assim como no passado, foram plantadas sementes para que se mitigue essa desigualdade de acesso à terra, que possa dar prosseguimento a tudo isso de uma maneira efetiva, para reduzir a violência no campo e para que as pessoas tenham acesso à terra e possam viver com dignidade.
Estamos falando de um direito. Eu diria que é o direito mais elementar de qualquer ser vivo. Não apenas dos brasileiros que vivem no campo, mas de qualquer ser humano. E não apenas de seres humanos, os não humanos também precisam da terra. Inclusive os pássaros. Eles descem para se alimentar na terra. E sabendo que esse é um direito mais elementar de qualquer ser vivo, não se pode impedir que eles ocupem, que eles vivam e que possam se desenvolver dignamente. E isso foi feito historicamente com o Brasil.
Desde sempre, quando ele (Brasil) foi dividido em capitanias hereditárias e depois com a Lei de Terras de 1850, que excluía uma imensa parcela da população, pois só teria acesso à terra quem pudesse pagar por ela. E isso excluía em definitivo os povos originários, mas também os herdeiros das diásporas e as pessoas escravizadas que não puderam ter acesso à terra. Inclusive, nas campanhas abolicionistas do século XIX (o Brasil foi o último país a abolir a escravidão), eles não queriam apenas a liberdade dos indivíduos, mas também políticas públicas para que se pudesse viver dignamente. Liberdade e reforma agrária. Mas isso não foi feito, porque não era de interesse.
Falar sobre o direito à terra historicamente negado é falar do direito à vida. Não só das pessoas no campo. Isso passa por nós que vivemos na cidade também. Nós nos alimentamos e o que é produzido pelos grandes latifundiários no Brasil são commodities. Nós não comemos commodities. O Brasil é um país onde a fome aumentou muito nos últimos anos e isso se deve a toda essa desigualdade que se reflete no campo também. Dai pensar que somos seres políticos enquanto falam os da terra também, estamos falando de vida. Não é possível que em pleno século XXI as pessoas ainda permaneçam à margem dos seus territórios e que estejam prestes a ser expulso deles, seja pelo poder econômico, seja pelos interesses políticos. Isso também não caiba mais no nosso tempo.”
– Sobre ser definido como realismo mágico
“Pensando no contexto do livro, às vezes eu me pergunto por que fazem essa associação com o realismo mágico. Creio que a experiência religiosa que surge ali com muita força, talvez uma personagem não humana que narra a última parte da história, há uma maneira muito diferente de se perceber o olhar, o mundo e tudo aquilo que não é ocidental, que não conseguimos compreender de uma maneira racional. A gente tende a rotular essas coisas de ‘mágico’. Esse mundo e essa realidade faz todo sentido para essas personagens. É a vida delas, é o muno delas. E o convite que faço aos leitores é que se dispam de tudo o que vocês já aprenderam sobre o viver e tentem olhar a vida com os olhos dessas personagens. Me lembro também de Gabriel Garcia Marques, que escrevia o realismo, mas não havia nada ‘mágico’ nas histórias dele. Ele dizia: Quem diz que aquilo era mágico, não conhecia a América Latina“
– Se aventurar na literatura
“A literatura surgiu em minha vida muito cedo. É curioso isso, porque sou geógrafo de formação, depois fiz mestrado e doutorado no campo dos estudos étnicos e vim me interessar, mais tarde, pela literatura. Desde que aprendi a ler e a escrever, eu já redigia e, por um conting”nciamento familiar, pertencíamos a uma família de classe baixa e meus pais não me incentivaram pelo caminho da arte, mas a literatura sempre esteve comigo. Para mim, sempre foi muito fácil levar as coisas que eu aprendia ao mundo literário. Só consegui começar a escrever quando eu já tinha um trabalho, uma formação superior. Foi um pacto que eu havia feito com a minha família.“
– Sobre o título do livro – Torto Arado
“O arado é um objeto que está na fazenda e que aparece poucas vezes na história, como um objeto que atravessa o tempo. Ele foi manejado pelos ancestrais históricos das pessoas nessa localidade. E esse é um verso do autor Tomás António Gonzaga, poeta e cientista na sua obra ‘Marília de Dirceu’, publicado no fim dos anos 1800: “O frio ferro do torto arado”. Vi uma imagem muito forte ali. Li esse livro na adolescência e esse verso ficou comigo.”
– Sobre a tradução para outros idiomas
Todos os tradutores têm contato comigo para sanar dúvidas. É uma história, com muitas expressões idiomáticas, coisas muito localizadas. Para o próprio Brasil já é um pouco difícil, pois temos um território imenso, com muitos muito vasto, com diversos falares e esse é um dos falares do nordeste brasileiro.
Tem expressões que os tradutores me perguntam, como “crianças cegas como gato”. A criança é tão ágil que se você piscar o olho, ela pode estar cortando a língua com a faca.
Sobre a fauna e a flora do Brasil, às vezes, também não encontramos um equivalente no idioma e fica a cargo da criatividade tradutor para encontrar a substituição sem deixar a história estranha.
Texto e fotos por Edi Fortini
Edição por Stefani Costa