Depois da polêmica envolvendo denúncias a respeito do envolvimento de integrantes da banda Mayhem com práticas e discursos nazistas, a assessoria da casa de espetáculos Opinião publicou uma nota oficial comunicando o cancelamento da apresentação por questões de segurança. A organização afirma ainda que os ingressos serão devolvidos conforme a forma de pagamento e que mais informações serão enviadas por e-mail.
“Nos últimos dias fomos surpreendidos com uma enxurrada de informações graves e posts nas redes sociais referentes ao show do Mayhem, marcado para acontecer no Bar Opinião. Nestes seus 40 anos, o Opinião é um dos espaços mais democráticos de Porto Alegre. Porém, a Casa considerou alguns fatos para tomar suas decisões: os movimentos nas redes sociais tanto pró quanto contra o evento, comentários suscitando manifestações no local e imediações do Bar e o potencial risco à integridade física de todos os envolvidos. Por isso, o Bar Opinião não irá receber o show da banda Mayhem.”
Desde que o anúncio da presença dos noruegueses em Porto Alegre ganhou destaque, uma mobilização para o impedimento do evento foi criada nas redes sociais. A primeira denúncia partiu do professor de Filosofia e pesquisador da extrema-direita, Renato Levin-Borges.
Em declaração à Hedflow, ele explica que recebeu diversas mensagens de movimentos e coletivos antifascistas alertando a respeito da performance da banda norueguesa na cidade.
Segundo as informações apuradas por ele, o baterista Jan Axel Blomberg (Hellhammer) e o baixista Jørn Stubberud (Necrobutcher) já deram declarações racistas e nunca se incomodaram em permanecer utilizando uma estética nazista.
“A questão é que o baterista já declarou ser contra a mistura de raças. Além disso, os integrantes do Mayhem já vangloriaram o assassinato de um homem gay cometido pelo baterista da banda Emperor (Bård Eithun), chamando a vítima de “fucking faggot” (bicha fodida). Sem falar na estética nazista que eles utilizam em seus artigos de merchandising, fora a passagem de outro supremacista pelo grupo, o Varg Vikernes”.
Em agosto de 1992, Bård ‘Faust’ Eithun foi acusado de assassinar um homem gay com mais de 30 facadas no Parque Olímpico de Lillehammer, na Noruega. Entretanto, só foi julgado e condenado a 14 anos de prisão em 1994, depois que Dani Filth (vocalista da banda Cradle Of Filth) prestou depoimento dizendo que ‘Faust’ tinha confessado o crime durante uma festa.
“Varg Vikernes, criador do Burzum, também foi convidado a tocar no Mayhem. Inclusive, ele assassinou a facadas o fundador do grupo Øystein Aarseth (Euronymus), que, teoricamente, seria comunista. Mas, na verdade, o relato dos seus próprios colegas revela que ele tinha paixão por figuras autoritárias. Ele gostava de Mao e Stalin, mas seus amigos de banda também afirmaram que ele tecia elogios a Hitler”, explicou Renato.
Em 2017, a Hedflow denunciou o canal intitulado ‘Thulean Perspective’, onde Varg Vikernes pregava mensagens e ideais supremacistas. O Youtube só foi remover o conteúdo em 2019.
Outra figura pública a se manifestar com indignação foi o deputado estadual pelo PT, Leonel Radde. Através de um vídeo em seu perfil no Twitter, ele disse que entraria em contato com as autoridades locais para que o evento fosse cancelado.
“Pode-se dizer que a banda é abertamente neonazista, utilizando símbolos do nazismo e do neonazismo norueguês. No logo, tem uma cruz gamada adaptada e também a roupa de um dos integrantes tem as famosas totenkopf, que são as caveiras da SS nazista. Nós estamos levando o caso para as autoridades responsáveis e esperamos que o bar Opinião e a produtora cancelem esse show porque nós não podemos aceitar neonazistas em território brasileiro, gaúcho e também porto alegrense. Fascistas não passarão em nenhum lugar do mundo”, disse em sua publicação.
Depois de ser questionado por militantes e grupos de ação antifascista da região, um dos roadies desistiu de trabalhar no evento. Por razões de segurança ele preferiu não revelar a sua identidade, no entanto contou que após receber as informações sobre o Mayhem sentiu que o mais correto era mesmo pedir para não participar da organização técnica do show.
“Pesquisando mais a fundo vi que tinha que sair desse projeto a fim de não me corromper. Eu fui o único que resolveu sair. Encontrei com alguns colegas que estão escalados para esse dia, conversei e apresentei todas as informações possíveis sobre a banda, mas não senti muita firmeza. Um deles se posicionou a favor das falas do nosso supervisor, achando que eu estava deixando de participar por desinformação ou ‘dor de cotovelo’”, revelou.
O roadie relatou ainda não ter medo de represália por parte da produtora ou do local onde trabalha, já que pediu licença apenas para esse projeto e que isso é um direito garantido.
“Quanto ao cenário extremo do metal, do black metal em específico, tenho pouco conhecimento. Eu sabia apenas das histórias que envolviam mortes e capa de álbum com corpo de integrante. Penso que se a gente não se mexer, fiscalizar e denunciar possíveis células nazi e junções suspeitas, isso vai se agravar cada vez mais. É inaceitável que um dos poucos redutos da cena aqui de POA seja corrompido por dinheiro. Sabemos que o dinheiro é branco e que aqui quem manda é quem tem o capital”.
Para Renato Borges, tudo teria sido facilmente resolvido se a banda e os responsáveis pela organização se manifestassem e condenassem atitudes ou discursos nazistas de forma direta, sem rodeios.
“Movimentos antifas ao redor do mundo denunciam que o Mayhem é nazista ou tem relações muito próximas com os nazistas e eles nunca fizeram nada para se descolar disso. Eu sou uma das pessoas que fez a denúncia, mas eu não faço isso sozinho. Reitero que é simples resolver isso: basta o Mayhem se posicionar e dizer que não é nazista e que é contra o nazismo, mas duvido que eles farão isso. E é aí que a gente tem que se perguntar o porquê”.
Pablo Szuhanszky, professor de Ciências da rede pública de Porto Alegre e vocalista da banda de hardcore Chapman, disse perceber que a normalização de eventos com bandas de conteúdo nazista ou racista é algo que nasce dentro de uma bolha branca em países democráticos que confundem liberdade de expressão com o direito de defender absurdos como esses.
“Antifascismo também é sobre territórios. Temos que defender o nosso bairro, a nossa cidade e a nossa cena. Nesse processo se cresce junto, se educa. Acho correto e louvável o cancelamento do show do Mayhem, contribui enormemente para amenizar o problema em questão. Não seria uma vitória antifascista, seria uma vitória da sociedade.”, reforçou.
O músico falou ainda acerca da importância de se manter organizado, principalmente em momentos de tensão como esse. “Em Porto Alegre existem várias frentes de luta e vários coletivos. Desde bandas organizando festivais independentes para arrecadar alimentos até coletivos como a Ação Antifascista Social, que cozinha e distribui marmitas. Sem falar na luta da comunidade LGBTQIA+ (que é estruturada há décadas), do movimento Quilombola, das retomadas indígenas, dos produtores das feiras agroecológicas e etc. Atualmente, as pessoas que estão nessas linhas de frente estão se enxergando e se apoiando mutuamente. Está bem interessante a movimentação por aqui. A chave é a autogestão e a horizontalidade”.
A digressão do Mayhem pela América Latina também inclui México, Guatemala, Costa Rica, Chile e Argentina. A banda possui ainda uma apresentação marcada em Brasília, no próximo dia 22 de março, no Toinha Brasil Show.
Entramos em contato com um dos responsáveis pela organização do evento, mas até o fechamento desta matéria não recebemos nenhum retorno.
Um rastro de histórias bizarras
No ano passado, a banda Mayhem realizou uma turnê pelo Brasil. Um dos principais shows aconteceu durante o Maranhão Open Air, festival realizado na capital São Luís. Na altura, foram publicados relatos afirmando que uma pessoa havia tentado suicídio durante a apresentação da banda norueguesa. Inclusive, um vídeo foi divulgado mostrando as grades em frente ao palco sujas de sangue.
Na época, tentamos contato com algumas pessoas que publicaram o vídeo e também com ouvintes do grupo que estavam no festival… Ninguém quis se manifestar. A organização do evento também não soltou nenhum comunicado a respeito.
Bruno Teixeira, baixista da banda Desalmado e um dos colaboradores da Hedflow, foi um dos músicos a atuar nesse mesmo evento. Ele disse ter visto uma pessoa toda coberta de sangue, mas não tinha certeza do que se tratava.
“O que eu vi de fato foi um cara todo cortado e ensanguentado. Aí começaram a surgir as histórias, na hora, sobre suicídio e tal… Ao percebermos isso, saímos de lá na dúvida sobre o que rolou, já que o nosso comprimisso de tocar no evento já tinha sido concluído. Dias depois, fomos informados que se tratava apenas de uma ‘performance de um fã’ do Mayhem”, completou.
Desde que o anúncio do show do Mayhem em Porto Alegre tomou tais proporções, diversos debates foram abertos a respeito da cena black metal e de obscurantistas fãs do gênero. Não obstante, o professor Renato Borges frisou que não há problema nenhum em gostar de black metal e que isso não é um ataque ao estilo musical.
“Eu não estou falando sobre o estilo musical ou apontando para quem gosta de Mayhem ou de black metal. Também não estou acusando essas pessoas de serem necessariamente nazistas. Não é esse o caso. Só que, se a banda não é nazista como alegam os fãs, por que o grupo nunca moveu um dedo, em décadas, para se desvencilhar disso? Se não é nazista, são coniventes por que? Eles poderiam tranquilamente tomar uma posição e resolver toda essa situação”.
Para o vocalista Pablo, separar a obra do artista é algo impossível. Segundo ele, muitas vezes as pessoas não tomam uma posição por ‘amor cego’ às figuras dos ídolos. “As pessoas que são fãs do Eric Clapton, por exemplo, não conseguem aceitar como algo de extrema gravidade ele ter se declarado contra a quarentena na pior fase da pandemia, além de ter reclamado da vacinação e ter patrocinado banda antivax. Sem falar das declarações xenofóbicas que ele fez no final dos anos 80”, relembrou.
Ele acredita ainda que na cena do metal extremo acontece o mesmo fenômeno, pois os fãs levam para o pessoal e se ofendem quando o alerta a respeito de alguns artistas desse estilo de música pesada acontece. “Não sei se existe uma fórmula que resolva, mas, certamente, fazer campanhas para cancelar esses shows, constranger as casas e as produtoras têm um papel ativo nessa conscientização”, finalizou.