O que o Nirvana disse sobre Steve Albini

O Nirvana fez a sua primeira publicação deste ano, através da rede oficial da banda, em relação ao falecimento súbito na terça-feira (do dia 7 de maio de 2024) do engenheiro de som Steve Albini, que gravou In Utero. Ele sofreu um fulminante ataque cardíaco em casa, na cidade de Chicago, nos Estados Unidos.

Em homenagem a Albini o Nirvana apenas postou, singelamente, as fotos da carta que receberam dele com as condições para aceitar o trabalho de gravar o trio.




Abaixo a Hedflow traz com exclusividade a carta completa traduzida em Português:


Kurt, Dave e Chris:

Primeiro, deixem eu me desculpar por levar alguns dias para montar este esboço aqui. Quando falei com o Kurt, eu estava no meio da gravação de um álbum do Fugazi, mas pensei que teria um ou dois dias entre gravações para resolver tudo. Minha agenda mudou inesperadamente e este é o primeiro momento que tive para passar tudo isso para vocês. Me desculpem.

Acho que a melhor coisa que vocês poderiam fazer nesta ocasião é exatamente como disseram: gravar o disco em alguns dias, com alta qualidade, mas com o mínimo de “produção” possível e sem interferências dos ‘cabeças de bala do escritório’. Se isso é realmente o que vocês querem fazer, eu adoraria estar envolvido.

Porém, se, em vez disso, vocês se encontrarem na posição de estarem temporariamente favorecidos pelo gravadora de vocês, apenas para vê-la puxar a corrente em algum momento (falando na cabeça de vocês para retrabalhem músicas/sequências/produção, chamando mercenários contratados para ‘adoçarem’ o disco e depois entregarem tudo para algum ‘lacaio do remix’ que seja…), então aí será uma chatice da qual não quero participar.

Estou interessado apenas em trabalhar em discos que reflitam legitimamente a percepção da banda sobre sua música e existência. Se vocês se comprometerem com isso como um princípio da metodologia de gravação, então eu vou me esforçar por vocês. Vou trabalhar em círculos ao seu redor. Vou girar em volta das cabeças de vocês como uma catraca.

Trabalhei em centenas de discos (alguns ótimos, alguns bons, alguns horríveis, muitos em pátios) e vi uma correlação direta entre a qualidade do resultado final e o clima da banda durante todo o processo. Se o disco leva muito tempo e todos ficam chateados e examinam cada passo, então as gravações acabam tendo pouca semelhança com a banda ao vivo, e o resultado final raramente é satisfatório. Fazer disco punk é definitivamente um caso em que mais ‘trabalho’ não implica em um melhor resultado final. É evidente que vocês mesmos já aprenderam isso e apreciam essa lógica.

Sobre a minha metodologia e filosofia:

#1: A maioria dos engenheiros e produtores contemporâneos vêem um disco como um ‘projeto’ e a banda como mero elemento do projeto. Além disso, consideram as gravações como camadas controladas de sons específicos, cada um dos quais sob controle completo desde o momento em que a nota é concebida até as outras seis finais. Se a banda for pressionada no processo de gravação de um disco, que assim seja; desde que o ‘projeto’ tenha a aprovação do investidor no controle.

A minha abordagem é exatamente oposta.

Considero a banda o mais importante, como a entidade criativa que gerou a cara e o estilo do seu som e uma entidade social existente 24 horas por dia. Não considero que seja minha função dizer-lhes o que fazer ou como tocar. Estou bastante disposto a deixar as minhas opiniões serem ouvidas (se eu acho que a banda está fazendo um belo progresso ou um grande erro, considero parte do meu trabalho informar isso aos integrantes), mas se a banda decidir buscar por algo, vou me certificar de que isso seja feito.

Gosto de deixar um espaço para acidentes ou caos. Fazer um disco perfeito, onde cada nota e sílaba esteja no lugar e cada bumbo seja idêntico, não é nenhum truque. Qualquer idiota com paciência e orçamento para permitir tal tolice pode fazê-lo. Prefiro trabalhar em discos que aspirem a coisas maiores, como originalidade, personalidade e entusiasmo. Se cada elemento da música e da dinâmica de uma banda for controlado por faixas de cliques, computadores, mixagens automatizadas, gates, samplers e sequenciadores, então o disco pode não ser incompetente, mas certamente não será excepcional. Também terá muito pouca relação com a banda ao vivo, por conta de tanta baboseira.

#2: Não considero gravação e mixagem tarefas não relacionadas que podem ser realizadas por especialistas sem envolvimento contínuo. 99% do som de um disco deve ser estabelecido enquanto o take básico é gravado. As suas experiências são específicas dos seus registros; mas na minha experiência, remixar nunca resolveu nenhum problema que realmente existisse, apenas problemas imaginários. Não gosto de remixar gravações de outros engenheiros e não gosto de gravar coisas para outra pessoa remixar. Nunca fiquei satisfeito com nenhuma das versões dessa metodologia. Remixar é para covardes sem talento que não sabem afinar uma bateria ou apontar um microfone.

#3: Eu não tenho um ‘evangelho fixo’ de sons e técnicas de gravação para aplicar cegamente a todas as bandas em todas as situações. Vocês são uma banda diferente de qualquer outra e merecem pelo menos o respeito de terem as suas próprias vontades e os seus próprios gostos abordados. Por exemplo, adoro o som de uma bateria estrondosa (digamos, de uma Gretsch ou de uma Camco) aberta em uma sala grande, especialmente com um bumbo de duas peles à la Bonham e uma caixa estalada de doer. Também adoro os graves indutores e ‘vomitados’ que saem de um antigo amplificador de guitarra Fender Bassman ou Ampeg e o som totalmente estourado de um SVT com alguns tubos queimados. Assim como sei que esses sons são inapropriados para algumas músicas e tentar forçá-los é uma perda de tempo. Basear as gravações no meu gosto é tão estúpido quanto projetar um carro em torno do seu estofamento. Vocês precisam decidir e depois articular para mim como querem soar, para que não cheguemos ao disco em direções diferentes.

#4: Onde gravamos o disco não é tão importante quanto como ele é gravado. Se você tem um estúdio que gostaria de usar, nada de bruxa. Caso contrário, posso fazer sugestões. Eu tenho um ótimo estúdio de 24 canais em minha casa (Fugazi estava lá, você pode perguntar como eles avaliam), e estou familiarizado com a maioria dos estúdios no Centro-Oeste, na Costa Leste e uma dúzia ou mais em o Reino Unido.

Eu ficaria um pouco preocupado em ter vocês em minha casa durante todo o processo de gravação e mixagem, mesmo porque vocês são celebridades, e eu não gostaria que a notícia se espalhasse pela vizinhança e vocês tivessem que aturar isso. muita besteira estilo ‘fã’; seria um ótimo lugar para mixar o disco, mas não teria como vocês ficarem em paz.

Se vocês quiserem deixar os detalhes da seleção do estúdio, hospedagem e etc. comigo, ficarei muito feliz em resolver tudo isso. Mas se vocês quiserem dar conta disso, é só falarem.

Minha primeira escolha para um estúdio de gravação externo seria um lugar chamado Pachyderm em Cannon Falls, Minnesota. É uma ótima instalação com excelente acústica, um casarão dos sonhos, bem arquitetado e totalmente confortável, onde a banda toda pode ter a estadia durante as gravações. Isso torna tudo mais eficiente. Com todos lá, as coisas podem ser feitas e as decisões serem tomadas muito mais rapidamente do que se estivessem em algum outro lugar urbano qualquer. Há também todas as coisas desfrutáveis como sauna, piscina, lareiras, um riacho de trutas e até 50 acres e tal. Já gravei vários discos lá e sempre gostei do lugar. Também é bastante barato, considerando o quão grande a instalação é.

O único ponto fraco do Pachyderm é que os proprietários e o gerente não são técnicos e não têm um técnico de plantão. Já trabalhei lá o suficiente para consertar praticamente qualquer coisa que possa dar errado, exceto um sério colapso eletrônico, mas tenho um cara com quem trabalho muito (Bob Weston) que é muito bom em eletrônica (design de circuitos, solução de problemas e construção de coisas), então se decidirmos fazer isso lá, ele provavelmente aparecerá na minha folha de pagamento, já que seria um seguro barato se uma fonte de alimentação explodir ou ocorrer alguma falha grave no auge do inverno, a 80 quilômetros da técnico mais próximo. Ele também é engenheiro de gravação, então pode fazer algumas das coisas mais mundanas (catalogar fitas, empacotar coisas, buscar suprimentos) enquanto estivermos propriamente gravando o disco.

Um dia desses ainda vou convencer o Jesus Lizard a ir até lá para mandarmos ver. Ah, sim, e é o mesmo console Neve em que o álbum Back in Black do AC/DC foi gravado e mixado, então já sabem que têm o que é preciso para detonarem.

# 5: Grana. Expliquei isso para o Kurt, mas achei melhor reiterar aqui. Eu não quero e não aceitarei royalties sobre nenhum disco que eu gravar. Sem exceções. Ponto. Acho que pagar royalties a um produtor ou engenheiro é eticamente indefensável. A banda escreve as músicas. A banda toca a música. São os fãs da banda que compram os discos. A banda é responsável por ser um ótimo disco ou um disco horrível. Os royalties pertencem à banda.

Gostaria de ser pago como um encanador: eu faço o trabalho e vocês me pagam o que vale. A gravadora espera que eu peça um ponto ou um ponto e meio. Se assumirmos três milhões de vendas, isso equivale a cerca de 400.000 dólares. De jeito nenhum eu aceitaria tanto dinheiro. Não conseguiria dormir.

Tenho que me sentir confortável com a quantidade de dinheiro que me pagam, mas o dinheiro é de vocês, e insisto que vocês também se sintam confortáveis com ele. O Kurt sugeriu que me pagassem uma parte que eu pudesse considerar o pagamento integral, e, então, se vocês achassem realmente que eu merecia mais, me pagariam outra parte depois de terem uma chance de conviver com o álbum por um tempo. Isso seria bom, mas provavelmente acarretaria em mais problemas organizacionais do que vale a pena.

Qualquer que seja. Confio que vocês serão justos comigo e sei que devem estar familiarizados com o que um capanga normal da indústria gostaria. Vou deixar vocês tomarem a decisão final sobre quanto receberei. O quanto vocês decidirem me pagar não afetará o meu entusiasmo pelo disco.

Algumas pessoas na minha posição veriam isso como uma oportunidade de aumentarem os negócios depois de se associarem à banda de vocês. Eu, no entanto, já tenho mais trabalho do que praticamente posso dar conta e, francamente, o tipo de pessoas que essas superficialidades atrairão não são pessoas com quem eu queira trabalhar. Não considerem isso um problema.

É isso.

Por favor, me telefonem para esclarecermos caso algo não tenha ficado claro.
Steve Albini.

Obs.: Se uma gravação leva mais que uma semana para ser feita, alguém está fazendo merda.




Carta traduzida na íntegra pelo nosso editor Fernando Araújo.

Em memória de Steve Albini.


O que o Nirvana disse sobre Steve Albini

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