Kubrusly: mistério sempre há de pintar por aí. Uma história de amor, memória e música

A TV aberta sempre teve um papel importante nos lares brasileiros. Nos anos 90, em especial, o domingo era um dia que servia para reunir a família na sala e acompanhar uma programação que, embora caótica, cumpria ao menos o papel de entreter. Era um momento de distração, para alguns talvez de diversão até. Foi nesse cenário que muitos de nós nos encontramos com Maurício Kubrusly pela primeira vez.

Em 2023, Kubrusly foi diagnosticado com demência frontotemporal, doença neurodegenerativa sem cura, que afeta a memória, a linguagem e o comportamento. 

A carreira do jornalista, hoje com 79 anos, começou na década de 1960. Me lembro dele por outras décadas, mas o achava meio ‘maluquinho’. A sua aparência séria dava-me a impressão de ver um homem bravo, impressão essa que logo acabava quando ele começava a falar, sempre muito bem humorado e cativante. Era como se ele pregasse uma peça na qual era visto pela primeira vez. Gosto do Kubrusly como gosto dessas pessoas que acho que conheço apenas porque me acostumei com a ‘presença’ delas, mesmo que através de uma tela. Essas figuras da TV são assim: a gente conhece, mesmo sem ‘conhecer de verdade’. Talvez seja por isso que às vezes me pego até respondendo o famigerado “boa noite” do William Bonner.

O documentário ‘Kubrusly: Mistério Sempre Há de Pintar por Aí” é uma obra delicada e inteligente que nos faz pensar nesse grande mistério que é a vida, que mesmo com momentos inevitáveis de dor, nos entrega uma beleza imensurável. Usando arquivos de suas reportagens, o filme constrói uma narrativa que é, ao mesmo tempo, biográfica e poética. O jornalista empresta a si mesmo as suas memórias perdidas, revivemos com ele momentos muito bonitos de quando ele nos visitou através da televisão.

Atualmente, Maurício Kubrusly vive no presente, não tem escolha. E é impossível não refletir: como seria viver sem essas janelas para o passado e o futuro? E como justificar o que permanece, como o amor e a capacidade de amar?

Ficamos sabendo como ele descobriu a sua profissão sem ter a menor ideia de como fazer jornalismo. Quando migrou para a televisão, enfrentou mais uma vez o desconhecido, desbravando um terreno novo com coragem e curiosidade. A oportunidade no jornalismo surgiu quando ele era bastante jovem, tendo uma interação ‘olho no olho’, onde simpatias nasciam como faíscas. Uma realidade bastante diferente dos tempos modernos. Foi assim que ele ouviu “esteja aqui amanhã às 9”; tinha ganhado um voto de confiança.

Gilberto Gil e Maurício Kubrusly em cena de “Kubrusly – Mistério sempre há de pintar por aí” – Globoplay/ frame/ reprodução


Mais do que um jornalista, Kubrusly é essencialmente um ser criativo. Alguém que transformou sentimentos em palavras e propiciou ao espectador sentir a música que ele ouvia, os lugares que visitava ou as peças que assistia. A paixão e a dedicação estavam impressas em cada matéria dele, todas repletas de beleza e sensibilidade. Ele fazia arte. Quando falava de música, fazia de forma singular.

Algo que resiste à erosão que apaga memórias é o amor pela música. Nos anos de ditadura no Brasil, Maurício Kubrusly trabalhou como crítico musical e jornalista cultural. Nesse período, ele trabalhou em veículos como o Jornal do Brasil, Jornal da Tarde e Folha de São Paulo. Além disso, foi diretor da revista Somtrês, uma das primeiras publicações brasileiras especializadas em música, que circulou durante as décadas de 1970 e 1980. Falar sobre música também é uma forma de resistência.

O jornalista ainda guarda um iPod com mais de 15 mil músicas gravadas. Ele canta as suas canções favoritas e reage a elas com a mesma emoção de quem ouve uma bela música pela primeira vez. Ao ouvir Gilberto Gil tocando Esotérico na sua frente, ele pergunta emocionado: “Que lindo! Quem fez?”.
O que ainda resiste nele pode ser chamado sim de amor. Prova disso é quando chama por Bia, a sua companheira, da qual não esqueceu o nome. Beatriz Goulart, é uma dessas pessoas raras, que ao encontrar pelo caminho você olha para os céus e se dá conta da sorte que teve.

O documentário é uma homenagem justa ao homem que foi, que é e que continuará sendo através das suas memórias e das suas contribuições. Não deixa de ser também, uma homenagem ao jornalismo. Ele nos faz perceber que as relações que construímos ao longo da vida se tornam memórias vivas. E, no caso de Maurício Kubrusly, cada memória compartilhada, cada história contada, mostra que não existe tecnologia que substitua o toque humano, aquilo que nos sensibiliza profundamente: reconhecer a nossa loucura na loucura do outro e estranhar a nossa normalidade na normalidade do outro.


Filme: Kubrusly: Mistério Sempre Há de Pintar por Aí / Globoplay.

Kubrusly: mistério sempre há de pintar por aí. Uma história de amor, memória e música

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- Nascida nos anos 90 e apaixonada por música e escrita, é fã de Beatles e Rolling Stones. Acredita que escrever é como soltar pássaros de gaiolas. Instagram: @eladanimelo @daniescreve / X: @danislelas