Um grito punk no Carnaval de São Paulo

Reportagem em parceria com a Revista Sabiá


“Para ocupar as ruas é necessário ter responsabilidade!”

Assim começa a convocação de carnaval do Bloco 77, que neste ano comemora 10 anos de fundação. Com frases inclusivas que destacam a participação de crianças e a solidariedade social, os cortejos de aniversário estão programados para os próximos dias 18 e 20 de fevereiro, com concentração na região da Barra Funda, a partir das 14 horas.

Além da atitude punk, o Bloco 77 também é reconhecido pelas lutas antifascistas. Os organizadores fazem questão de destacar em todos os convites que “racistas, homofóbicos, machistas e xenófobos não são bem-vindos” e que a única “exigência” é chegar usando as cores oficiais dos foliões: preto e amarelo.

Segundo Anderson Boscari, músico, produtor audiovisual e um dos fundadores do movimento, a ideia de criar o Bloco 77 partiu de uma “conversa de fim de ano” com um amigo, que sugeriu a criação de um bloco de carnaval “sem saber absolutamente nada sobre como organizar” algo assim. “A ideia do  77 já surgiu na hora, pois foi o ano em que o punk nasceu. Já “Os Originais do Punk” veio um pouco depois, em referência ao grupo “Os Originais do Samba”, conta.

Com um público médio de 3 mil pessoas por desfile, o Bloco 77 sempre se organizou dentro dos princípios DIY (sigla em inglês para “Do It Yourself”, que em português significa “faça você mesmo”). Anderson conta ainda que durante essa trajetória de uma década, as ajudas sempre vieram de pessoas próximas ou com incentivos de bares locais e/ou pequenos comércios.

“Em outros anos fizemos algumas apresentações em palcos da prefeitura, o que nos rendeu um certo valor, mas longe de ser uma grana que fosse capaz de cobrir todos os nossos custos. Em 2023 tivemos um apoio maior de uma empresa grande e isso ajudou muito, já que os gastos pós-pandemia dobraram e o nosso caixa não daria conta de arcar com tudo”, explica.

Já para Denis Marsola, músico e designer gráfico, foram “Os Originais do Punk” que fizeram ele aprender a gostar de carnaval. “Durante esses anos, toda a amizade que temos com as bandas permitiram que suas músicas fossem cantadas em nossos desfiles, além de sempre aparecerem figuras conhecidas no movimento quando a gente começa a tocar”, relembra.

No caso de Catarina Duleba, analista administrativa e também integrante assídua, foi no Bloco 77 que ela conheceu muitos dos seus ídolos. “Isso é bom demais e acontece ano após ano. No nosso primeiro ensaio aberto deste carnaval, por exemplo, cantamos com o Ariel e com a Lê do Gritando HC. No último ensaio, tocamos no mesmo espaço que Gritando HC e Cólera, no Tendal da Lapa. Isso foi mágico!”, revela.

“Levantamos a bandeira do movimento punk para mostrar o quanto ele pode ser relevante no mundo. Sem nos esquecermos daqueles que já não estão aqui, mas que foram pessoas muito ativas na cena, como a Tina, o Embu, a Canal e o próprio Redson, um dos homenageados deste ano”, complementa Denis.


Wendel, vocalista da banda Cólera, cantando no último ensaio do Bloco 77 antes do Carnaval 2023



Do luto à luta



Depois de quatro anos de desvalorização da cultura popular, dos mais de 700 mil mortos pela negligência do Estado durante a pandemia e com todo o retrocesso provocado pelo governo anterior em vários setores, a euforia e o grito de alegria “entalado” na garganta de muitas pessoas, finalmente será ouvido pelas ruas do Brasil.

A expectativa para o Carnaval é algo visível no cotidiano de muitos trabalhadores espalhados pelo país. Entre os ‘punks foliões’ do Bloco 77, não será diferente.

Por isso, para Catarina, é extremamente importante ter uma postura clara e bem definida neste momento, principalmente quando se faz parte de um movimento musical que sempre teve como base princípios ligados à libertação e à equidade entre os indivíduos.


“No bloco, a gente se posiciona principalmente através das músicas de bandas que homenageamos. São canções de outros tempos, mas são clássicas justamente porque se mantêm muito atuais. Cantamos letras que questionam o sistema político-econômico que vivemos. Fazemos isso coletivamente a cada carnaval. Individualmente, estamos envolvidos com música e política o tempo todo, afinal, tudo é política”


Com o crescimento de ideias reacionárias e políticas que atacam diretamente os direitos conquistados a duras penas pelo povo, o Brasil vive hoje uma verdadeira luta contra projetos que validam movimentos e partidos de extrema-direita. Em alguns casos, políticas públicas baseadas em pensamentos fundamentalistas e de origem fascista estão sendo ‘normalizadas’, ganhando, até mesmo, espaço na institucionalidade.

Esse crescimento abrange todas as classes sociais, principalmente as mais baixas. Infelizmente, na cena punk brasileira esse ‘fenômeno’ também se evidencia.

“A juventude sempre esteve ali. Desde os anos 70 no punk na Vila Carolina, até hoje nos slams… Às vezes no funk, no rap e no hardcore de luta também. Estão ali apesar de toda ideologia neoliberal que contamina todos os espaços, até a música. Sem contar a rotina exaustiva da classe trabalhadora que, na juventude, tem que se dividir entre estudo, trabalho, horas em trânsito, entre outras situações que provocam uma apatia política”, explica Catarina.

Segundo um mapa elaborado por Adriana Dias, antropóloga e pesquisadora do nazismo no Brasil, células de grupos neonazistas cresceram 270,6% no país entre janeiro de 2019 e maio de 2021. Esse crescimento, segundo os dados levantados por Dias, está associado ao impulsionamento de discursos de ódio e extremistas contra os direitos conquistados pelas minorias representativas nos últimos anos. A falta de amparo e punição contribuíram para que esses círculos se espalhassem por todo território, com uma concentração considerável na região sul do Brasil.

“Mas, nestes terríveis anos de desgoverno, vi como nunca uma juventude se reorganizando para enfrentar os ataques das classes dominantes na educação, na cultura, e em tudo que tentam nos tirar. Vejo uma juventude preocupada cada vez mais em se envolver na política, se organizar em coletivos, ir para a luta, cobrar pelos que ficaram para trás, mostrar que não aceitaremos uma anistia. Nada mais punk que isso. Apesar de não sermos mais tão jovens no Bloco, acredito que mantemos vivo este espírito jovem, contestador e agitador”, reforça.




Com as pequenas grandes lutas do dia a dia, o Bloco 77 também se mantém firme no compromisso de levar diversão e consciência de classe por onde passa. Entre as principais parcerias do coletivo, destaque à Ação de Rua SP, projeto de alimentação solidária, capacitação e reinserção social criado durante a crise sanitária de covid-19 no Brasil.

Foi com a venda de lanches e arrecadação de insumos que o coletivo aproveitou a oportunidade para chamar o ‘punk folião’ a ajudar o programa através de doações mensais ou participando de alguma das diversas atividades de distribuição de marmitas e utensílios de higiene às pessoas em situação de rua na cidade de São Paulo.

Um levantamento feito por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) revela que 48.261 pessoas viviam nas ruas de São Paulo no ano de 2022, sendo o maior já registrado na cidade. Outro dado importante é que a capital paulista acumula 25% das pessoas nessa condição em todo o país, sendo 42% concentrados em todo o distrito. Ou seja: a cada 10 cidadãos vivendo nas ruas do Brasil, 4 estão no estado mais rico da federação.

Nesta segunda-feira (13), foi divulgada uma pesquisa conduzida pela Sociedade Brasileira de Pediatria, com base nos dados do Ministério da Saúde, indicando que o número de internações de crianças por desnutrição no Brasil é o maior desde 2012. Todos os dias, em média, 11 crianças com menos de 5 anos são internadas no país. A região Nordeste concentra a maior parte dos casos: quase 36% do total.




Da folia ao futuro

Apesar desse visível estado de felicidade e uma imensa vontade de festejar, Rodrigo Lima, vocalista da banda Dead Fish, lembra que ainda existe uma inquietude permeando em várias camadas da sociedade brasileira.

“Eu acho que vai ser um carnaval muito intenso mesmo, apesar da tensão social. Acredito que blocos como o Bloco 77 trazem o punk e os hinos punks para as ruas, tentando fazer justamente esse meio-campo”, conta o músico ao lembrar da importância de se ocupar todos os espaços em um momento tão delicado para as instituições democráticas no Brasil.

Mesmo “odiando políticos”, Denis Marsola sabe que não é hora de abaixar a guarda, já que, segundo ele, o atual governador de São Paulo é “um cachorrinho do Bolsonaro” e inimigo das iniciativas culturais e populares. No entanto, o designer faz questão de pontuar que sempre houve falta de investimento aos trabalhadores que vivem da Cultura no Brasil.



“Não espero grande coisa para os próximos quatro anos, mas quando é que tivemos, de fato, um grande investimento para quem está na luta, começando uma banda ou tentando manter lugares com portas realmente abertas? A gente continua precisando disso”, desabafa.




Além do governador Tarcísio de Freitas, o prefeito da cidade de São Paulo, Ricardo Nunes, também não tem demonstrado apreço pelos investimentos públicos no setor cultural. Prova disso foi o recente projeto lançado pela prefeitura que pretende privatizar a gestão municipal da administração das Casas de Cultura da cidade.

Apesar da justificativa de que isso elevaria o total de investimento no setor, agentes e movimentos culturais afirmam que o edital, lançado para consulta pública em fevereiro de 2022, visa apenas o lucro em uma área que também precisa ter compromisso e respostas às necessidades da população.

“Na capital, vemos o estrago que as Organizações Sociais estão causando na cultura, além do avanço das tentativas de privatização das Casas de Cultura. Em nosso estado, já temos problemas com as entidades e fundações operando em importantes espaços, como as Fábricas de Cultura. Temos que nos preparar para enfrentar estes governos que querem privatizações e a completa mercantilização dessa atividade. Portanto, teremos trabalho. Mas, desde já, estaremos nas ruas denunciando esses parasitas!”, finaliza Catarina.



SERVIÇO
BLOCO 77 – OS ORIGINAIS DO PUNK
Quando: dias 18 e 20 de Fevereiro de 2023
Onde: Fabrique Club (Rua Barra Funda, 1071) 
Horário: Concentração a partir das 14 horas; saída às 15h
** Próximo ao metrô e Terminal de ônibus da Barra Funda (900 metros – 11 minutos a pé) e do METRÔ MARECHAL DEODORO (1.100 metros – 15 minutos a pé)


Texto por Stefani Costa
Fotos por Henrique Castro

Um grito punk no Carnaval de São Paulo

Por
- Latino-americana, imigrante e jornalista. Twitter: @sttefanicosta