Como fazer arte em tempos autoritários? A realidade cultural do underground brasileiro

O atual momento político do Brasil requer atenção, principalmente aos que vivem da produção artística.

Mesmo antes das eleições de 2018, a intolerância e a censura em cima de obras de arte e/ou eventos que valorizam a cultura, já se faziam presentes.

O episódio que viabilizou várias discussões sobre o assunto foi o cancelamento da exposição Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, realizada em 2017 pelo Santander Cultural em Porto Alegre.

Com a temática sobre diversidade sexual, a mostra reunia 270 produções de 85 artistas, entre eles, nomes consagrados, como o de Adriana Varejão, Lygia Clark e Cândido Portinari.

Mas nem os nomes de destaque impediram que pessoas, lideradas pelo Movimento Brasil Livre (MBL), protestassem nas redes sociais exigindo o fechamento da exposição. Na época, o principal argumento era o de que o evento fazia apologia à pedofilia e zoofilia.

Se grandes exposições já se tornaram alvos de ataques promovidos por ultraconservadores, o que dizer dos artistas que labutam no cenário underground?

Cartaz de Marcelo Augusto censurado após denúncias nas redes sociais.



O ilustrador Marcelo Augusto sabe bem quais são os riscos de uma censura bater em nossas portas por conta de um trabalho.

Em 2016 o artista foi convidado pelo Surra, banda paulista de thrash punk, a criar uma ilustração com críticas duras ao ex-governador de São Paulo.

“O primeiro trabalho que ganhou uma certa visibilidade foi a ilustração que fiz retratando o Geraldo Alckmin como um maníaco com uma panela de merenda cheia de dinheiro, fazendo referência ao esquema de desvio de verba da merenda escolar durante seu governo”, nos contou Marcelo.

A obra acabou gerando uma série de ataques e ofensas pessoais ao artista.

O Ladrão de merenda – por Marcelo Augusto

“Esse trabalho foi bastante compartilhado e algumas pessoas torceram o nariz. Muita gente que nem sequer sabia da existência da banda ficou indignada com o fato de chamarem o tucano de ladrão de merenda.”

Em outro caso mais recente, o artista teve o cartaz que anunciava um show da banda Ratos de Porão, em São José dos Campos, excluído do Facebook depois de várias denuncias relatadas pela própria produção do evento.

“Pelo momento em que vivemos, essa reação era esperada, pois existem muitas pessoas que idolatram cegamente as instituições militares. Acho que todo trabalho contendo crítica política e/ou religiosa gera desconforto em algumas pessoas. É inegável que vivemos em uma bolha e, muitas vezes, nossas obras nem atingem quem de fato se incomodaria.”, afirma Marcelo.

Dead Kennedys: o Brasil não é para amadores

Cartaz que seria usado para divulgar a turnê do Dead Kennedys no Brasil – por Cristiano Suarez



Outro artista que virou alvo de críticas nesta semana foi o ilustrador Cristiano Suarez, responsável pela criação do cartaz da turnê do Dead Kennedys pelo Brasil.

O artista de 32 anos, nascido em Palmeira dos Índios, interior de Alagoas, é formado em publicidade e começou desenhando bandas e logos na carteira da escola.

Em 2012, depois de chamar a atenção de produtores estrangeiros e de várias bandas de renome, seu reconhecimento profissional também chegou, sendo eleito um dos 200 melhores ilustradores do mundo pela revista Luzer´s Archive.

Com muita surpresa, a lendária banda de punk rock, criada na Califórnia em 1978, soltou uma nota oficial dizendo que “o cartaz divulgado não reflete uma declaração política ou posição do Dead Kennedys. A mensagem básica da banda tem sido, e é, pedir para as pessoas pensarem por si mesmas, não dizer a elas o que devem pensar.” (A nota foi retirada do ar minutos depois).

Após a polêmica, Cristiano Suarez se manifestou em suas redes sociais:



O beijo fascista

Yuri Sousa, mais conhecido como ‘BadBoyPreto’ também foi alvo de represálias depois de grafitar a versão de Jair Bolsonaro e Donald Trump para a obra ’O Beijo’, do artista russo Dmitri Wrubel.

Sendo uma das pinturas mais visitadas no ‘Muro de Berlim’, a inspiração fez com que Yuri criasse a versão ‘made in Brazil’  do mesmo grafite em um mural na cidade de Maracanaú, Ceará.

“A maioria das minhas obras são feitas para fazer com que as pessoas pensem. Eu só faço o que eu quero, não ligo para como as pessoas vão interpretar. Até porque o meu objetivo é fomentar o máximo de interpretações possíveis.”, nos contou Yuri.

Versão de ‘O Beijo’ criada pelo artista Yuri Sousa (Bad Boy Preto)



Subversão feminista

Ser artista no Brasil não é uma tarefa fácil para ninguém; muito menos quando as obras saem da cabeça de uma mulher feminista.

Bárbarah Canali, tatuadora e ilustrado, resolveu ‘peitar’ a sociedade e mergulhar em um mundo onde a criatividade e a liberdade de expressão sempre gritaram mais alto.

“Eu cresci no meio da tatuagem porque o meu pai também é tatuador. Aos 19 anos, quando comecei a cogitar seriamente o ofício, a minha família odiou. Eu estava cursando História na UNIFESP e as minhas perspectivas eram a de me formar e ser professora”, disse.

Em um país onde o número de feminicídios é alarmante (só em 2019 já foram registrados mais de 200 casos, segundo levantamento organizado por Jefferson Nascimento, doutor em Direito Internacional pela USP), mulheres que decidem se posicionar de alguma forma correm riscos e pagam um preço alto.

Arte criada por Bárbarah Canali



“Foi ótimo ter encontrado espaços que me permitiram crescer e evoluir, mas eu tive sorte. Geralmente, em estúdios de tatuagem, sempre escuto histórias medonhas de colegas tatuadoras que já tatuaram em estúdios mistos, com profissionais que ‘xavecam’ clientes, aprendizes e até casos de estupro, onde o tatuador se aproveita da vulnerabilidade da cliente para abusar dela de alguma forma. E assim a lista só vai aumentando”, revelou Bárbarah.

Com tantos casos e relatos de violência, muitas profissionais resolveram criar estúdios formados apenas por mulheres. A própria Bárbarah trabalha em um espaço como esse.

“Isso mostra que as mulheres, além de estarem tomando o seu espaço que é de direito, também estão dando uma resposta política ao machismo que existe no meio. Para nós é de extrema importância saber que o local onde você vai não te oferece riscos e a sua voz será ouvida”.

A arte que resiste!

Como ser resistência em um país cheio de líderes autoritários que não respeitam a diversidade, não valorizam a cultura e a educação e incitam o ódio entre os cidadãos?

“O governo Bolsonaro é anticultural e cabe a todos os artistas não baixarem a cabeça. Se incomodamos é porque estamos cutucando a ferida no lugar certo. Que não nos falte criatividade na hora de fazer arte que critique e ridicularize esse fascismo.”, afirmou o ilustrador Marcelo Augusto.

Para Yuri Sousa, pintar na rua não parecia algo tão “assustador como agora”. O artista revelou à Hedflow que por trabalhar muitas vezes sozinho, o próprio acaba exposto a qualquer tipo de pessoa. “Nos tempos atuais eu diria que todos nós, artistas e pessoas envolvidas com a criação, devemos ter mais cautela”.

Yuri Sousa (Bad Boy Preto) – Foto: Arquivo Pessoal


Mesmo com uma procura relativamente alta, Bárbarah acredita ter ‘dado azar’ em se tornar profissional no meio de todo esse caos.

“Ilustrei um livro recentemente e tenho me organizado para tornar minha rotina de trabalho mais eficaz. Porém, a conjuntura do Brasil neste momento é algo deprimente, pois o que já não tinha valor antes, agora ficou pior. Por isso, nosso maior desafio como artista tem sido a incerteza e o risco de passa a trabalhar com arte e não conseguir sobreviver”, desabafou.

Um país sem cultura

Assim que assumiu a presidência, o governante Jair Bolsonaro decidiu extinguir o Ministério da Cultura no Brasil, transformando-o em uma simples pasta dentro de outro ministério. O mesmo aconteceu com o Esporte, Desenvolvimento Social e o Ministério do Trabalho.

“Com essa mudança acho que muitos dos artistas do ‘mainstream’ vão acabar migrando para a produção independente, em vista que a limitação sobre o que vai ser produzido aumentará. Mas, com sinceridade, não sei o que esperar desse surto coletivo.”, explicou Bárbarah Canali.

“Sobre o underground, até onde estou conseguindo observar, a produção está cada vez melhor. O que não significa que não esteja sendo difícil. Tem muitos álbuns novos que estão muito bons, muita menina nova começando a tatuar. Muitos colegas meus estão conseguindo produzir conteúdo cada vez mais. O meu maior medo é que os artistas desse cenário passem a ser marginalizados”.

Bárbara também acredita que essa cultura de desvalorização da arte não vem de agora e que isso já acontece há anos.

“Você desvaloriza a arte e ‘mina’ a cultura; quando tudo está um caos fica muito mais fácil desprezar a existência de qualquer produção cultural. Só que as pessoas não vão parar de produzir arte. A questão é como essa arte vai circular, quais redes de apoio essas artes terão pra se manter, de que forma a censura vai acontecer. Então acho que por conta disso, o underground vai ter mais combustível do que nunca.”, finalizou.

Bolsonaro e Guaidó: lacaios de Trump e dos interesses estadunidenses sobre a América do Sul – Ilustração de Marcelo Augusto



Para o ilustrador Marcelo Augusto, acabar com um ministério tão importante foi um grande retrocesso para o Brasil.

“Esse papo de que dissolver ministério e fundir com outros é vantajoso, na minha opinião, é pura balela! Temos acompanhado nos últimos meses a ‘demonização’ de movimentos culturais e artísticos; e extinguir uma pasta tão importante acabou se tornando a representação máxima do que esse governo considera irrelevante”, destacou Marcelo.

O artista também acredita que esse negligenciamento com a área da cultura fará com que muitos produtores contem com a sorte para colocarem em prática seus projetos, além da perseguição que pode acontecer. 

“Será que em um futuro próximo teremos a volta do órgão responsável por fiscalizar e avaliar o que o governo considera aceitável ou não? Felizmente, eventos dentro do underground têm acontecido com grande engajamento político dos organizadores e do público, conscientizando as pessoas que não se trata apenas de entretenimento. Estamos em um momento de se organizar e deixar claro que queremos ‘Fora Bolsonaro’ e todos os golpistas!”.


Por Stefani Costa

Como fazer arte em tempos autoritários? A realidade cultural do underground brasileiro

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- Conteúdos políticos e sociais divulgados de forma espontânea e direta para um público apreciador de música, cultura e arte em geral.