Como o teatro independente está resistindo? Conheça o grupo Madame Frigidaire!

A cidade de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, é um lugar onde você pode encontrar pessoas criativas, inspiradoras e progressistas, sim! Através do grupo de teatro independente Madame Frigidaire, criado em 2015, essa possibilidade existe e, provavelmente, Belchior ficaria feliz em conhecê-los!

O grupo surgiu a partir da iniciativa de Lucas Quoos, Emily Barbosa e Manuela Zamprogna. Hoje, a Madame tem poetas, músicos, atores, dançarinos e artistas plásticos. Todos se definem como uma célula de resistência e vitalidade.

Sem sede própria, o grupo foi adotado e adotou A Casa de Cultura Vaca Profana, onde vêm realizando suas apresentações e ensaios. Em seu histórico, a Madame Frigidaire conta com peças como ‘Cenas Curtas’, ‘Comunicado à Academia’, ‘Scória’, ‘Uma Peça Sobre Estar Vivo’, ‘Vadia’, ‘Todas As Cartas de Amor São Ridículas’, entre outras intervenções que ocorrem em lugares alternativos.


Lucas Quoos – Foto de Fernanda Cacenote


Para entender melhor a dinâmica da Madame Frigidaire, conversei com Lucas Quoos, que além de professor, também é diretor e ator. Lucas disse em uma matéria publicado pelo site O Nacional, que na peça ‘Hamlet‘, de Shakespeare, é dito que o dever do teatro é reproduzir com fidelidade a natureza e o homem, e hoje, existindo meios para isso, o teatro pode ser reinventado.





Confira a entrevista de Lucas Quoos à Hedflow:

Dani | HedflowLucas, a Madame Frigidaire começou como uma ideia. Hoje, após 3 anos, vocês estão se consolidando como um grupo de teatro independente. Além da paixão pelo teatro, o que conectou vocês?

Lucas Quoos – Nunca sei dizer se é por coincidência ou não que nos juntamos em 2015 (só estreamos um ano depois), justo na época em que um cenário político tão caótico já se mostrava ter vindo para ficar no Brasil. Não sei mesmo se tem algo a ver com isso. Somos do interior do RS, de uma cidade grande e conservadora. Nada melhorou de lá pra cá. Mas, resolvemos virar nossos olhos para a arte, os livros e os amigos. Não de uma forma escapista, como pode parecer. Pelo contrário: penso na Madame Frigidaire como pessoas que toparam construir cenários e possibilidades em conjunto, sempre por ajuda mútua e nunca por hierarquia – essa horizontalidade característica das amizades. Então é isso que nos une: a generosidade, disponibilidade e criatividade para recusar uma existência normatizada e assujeitada. Em resumo: a estética da amizade.

Dani | Hedflow – “Inventores de Madame Frigidaire, peço bis”, com este verso da música ‘Balada de Madame Frigidaire’, de Belchior, te pergunto: por que escolheram este nome para o grupo de teatro?

Lucas Quoos – A gente começou a se reunir antes de ter um nome. Ele surgiu depois, organicamente. Fazíamos reuniões noturnas com recitais de poesia entre nós. Logo, os membros traziam músicas. Dançávamos muito nas reuniões. Ouvíamos de funk a Beatles. Enfim, sempre alguém trazia uma canção, uma bebida. A ideia era compartilhar, ouvir, re-ouvir. É difícil reunir um grupo de pessoas só para ouvir as músicas, né? Íamos estrear em breve e percebemos que o grupo não tinha nome para colocar no cartaz. A frase do Belchior veio num dia qualquer, como eu disse, de forma orgânica. Isso pode parecer despretensioso, mas reflete exatamente a maneira como o grupo cria suas peças.

Dani | Hedflow – A peça ‘Comunicado à Academia’ é baseada num conto de Franz Kafka onde Pedro é um macaco que se comporta como um homem de classe média. A obra é de 1919. O nosso homem de 2019 ainda se assemelha ao homem macaco de Franz Kafka?

Lucas Quoos – Eu nem sabia que o conto fazia 100 anos agora! Mas sim, pelo cinismo. Pedro somos todos nós, muito embora o cinismo não seja um comportamento com características universais – cada um possui seu cinismo. Mas o cínico moderno é aquele que mantém seus sintomas depressivos sob controle e, em certa medida, pode permanecer apto para o trabalho, como diria Sloterdijk. É o que importa ao cínico moderno: a capacidade de trabalho, apesar e depois de tudo. Você olha para os vários aparelhos como escritórios, gerências, funcionários de banco, universidades… São pessoas que olham para o nada no meio do expediente e percebem que nada daquilo significa, mas se adaptaram para exercer suas atividades e, ainda assim, não deixaram que as dúvidas sobre as mesmas acabem com eles. O sorriso de Pedro ao final da peça é uma denúncia do nosso próprio cinismo. “Trata-se de sobrevivência, é preciso sobreviver”, diz.

Dani | Hedflow – O retrato da nossa sociedade mostra uma grande contradição onde se pede mais amor enquanto a intolerância aumenta a cada dia. Somos jovens adultos desesperados. Quando a peça ‘Scória’ estreou, acredito que grande parte do público tenha se identificado com algum personagem. Quem é você em Scória e por quê?

Lucas Quoos – É clichê o que vou dizer, mas eu sou os três. Com todas as suas diferenças eles giram em torno do mesmo problema: o que é ser alguém? O Mosca liga o foda-se para o problema e diz que o segredo é abrir uma cerveja e dar risada de quem somos. O Fita tem esperança de que a resposta está na arte. Acredita que é um grande escritor, mas todos sabem que nunca publicou sequer um livro. Ou seja, uma fraude. A Jéssica decide se matar toda sexta-feira mas acaba perdendo a hora, tendo que deixar para semana que vem. O fato é que os três sabem que existem forças maiores que os impedem de ser qualquer coisa: a pobreza, o tempo, os vícios, os traumas, e, até mesmo, a própria linguagem. Então acabam sempre na mesma, bebendo juntos e tentando se divertir. Acho que o segredo tá aí. Superar o medo e a expectativa passiva e inventar um novo modo de existir no mundo.

Dani | Hedflow – Vivendo no Rio Grande do Sul, onde grande parte da população tem um perfil mais conservador, podemos dizer que o grupo de teatro Madame Frigidaire representa a contracultura?

Lucas Quoos – Um professor de capoeira amigo meu diz que contracultura é fazer macumba. Então não sei o que a gente faz, mas também não dá pra dizer que é cultura. É fato que muita gente vem nos relatar que odiava teatro até ir ver a Madame. A gente cansa de ouvir pessoas dizendo coisas tipo “nossa, nem sabia que dava pra fazer teatro assim” ou “teatro é isso? Confesso que antes achava um porre”. Esse retorno todo é bem legal. Mas cultura? Isso não é. O SESC de Passo Fundo ignora completamente a nossa existência, mesmo que já tenhamos entrado em contato.

Dani | Hedflow – Lucas, não sei se você pode falar a respeito do caso sobre o processo que o deputado Mateus Wesp moveu contra você, motivado por um texto de ficção postado no seu facebook. Ficou acordado que você se retrataria. Como professor, diretor de teatro e ator, de alguma forma isso fez com que você enxergasse algum limite no processo de criação e na expressão da arte e do pensamento livre?

Lucas Quoos – Eu estava lá, de frente a um deputado ‘pilchado’ de gaúcho em pleno dia digno de verão, para responder a uma queixa-crime sobre um texto onde insinuei que ele era homossexual. O que posso dizer? No meu texto ele era mais legal que na vida real. É o Brasil dos anos 10. As manifestações de ódio contra artistas, feministas, homossexuais, etc. têm em comum o mesmo sentimento de medo de si. O gaúcho machão morre de medo de ser gay. Eu nunca vi tanto medo na minha vida sobre qualquer coisa. Aliás, o presidente disse que prefere ter um filho morto a um filho homossexual. Todas essas pessoas representam seres humanos engajados em desestabilizar a ordem das coisas, que falam sem medo sobre o corpo, o prazer, o novo. Então, é óbvio que estou sendo simplista, mas um presidente foi eleito através do medo. E os ataques à cultura, educação e direitos humanos têm o mesmo tom. É claro que querem impor limites ao processo de criação artística. Mas isso não vai acontecer porque a gente já viveu na miséria e sempre soube dar um jeito. Eu não tenho medo.

Dani | Hedflow – A Manuela Zamprogna e a Emily Barbosa te ajudaram a fundar a Madame Frigidaire. Gostaria que você falasse um pouco da importância das mulheres neste grupo.

Lucas Quoos – Então, se você ir à alguma peça também verá que na plateia têm mais mulheres. Mas o fato é que, depois de um tempo, o grupo foi composto apenas pela Renata, a Gabriela e eu, além de uma ou outra participação, como a Bruna, que é poeta. Foi com texto dela que fizemos uma das peças mais importantes: ‘VADIA’. É uma peça sobre ser mulher, onde elas exploram as diferentes possibilidades que o corpo, a voz e a fala de uma mulher podem ocupar na realidade. Esse processo feito pela Renata, Gabriela, Isadora e Bruna, colocou a Madame dentro de um espaço de debate muito interessante, onde se entende que não há como fazer qualquer revolução sem passar pela revolução da mulher. Mas só posso falar até aí. Acredito que tudo isso tenha sido importante pra elas. Espero que a Madame possa continuar sendo esse lugar de debate enquanto existir.

Dani | Hedflow – A Vaca Profana é uma casa de cultura em Passo Fundo que, além de receber a Madame Frigidaire, abriga também outros artistas independentes. Quais outros nós deveríamos conhecer?

Lucas Quoos – A Vaca Profana é recomendadíssima na indicação de artistas! É um espaço que possui ótimos curadores e seres apaixonados por arte. De Passo Fundo, conheço alguns músicos que estão fazendo um trabalho interessante e inovador, como o já consagrado Irmão Victor, os Los Marias e o Lucas Chutes. Na literatura, de lá, tenho lido a própria Bruna Abrahão e a Mar Becker.



Dani | Hedflow – O brasileiro não tem o hábito de ir ao teatro. Sendo professor e mostrando às crianças a importância do lúdico, das artes cênicas e do improviso, você espera que esta realidade mude com o tempo?

Lucas Quoos – Só se o teatro deixar de ser chato e passar a ser relevante, trazer questões que realmente importam e depender menos de empresas para sobreviver.

Dani | Hedflow – Na peça ‘Sobre Estar Vivo’, você é o diretor, o ator e o texto também é seu. A peça é baseada na obra do filósofo romeno Emil Cioran, e uma das falas do personagem é esta: “a obrigação de um solitário é ser cada vez mais só”. Na sociedade das redes sociais, um dos nossos grandes problemas têm sido a solidão. Como você enxerga isso?

Lucas Quoos – A Frase é do Cioran. Acho importante a experiência da solidão para compreender a fragilidade. Da solidão cada vez mais intensa, sabe? Solidão de Deus, de verdade absoluta, de tudo. A experiência consigo mesmo que o personagem passa é sobre atravessar esse deserto e sobreviver pra ser melhor, apesar do absurdo.

Dani | Hedflow – Li uma crônica de Clarice Lispector onde ela diz que foi indagada sobre como seria o Brasil de 25 anos à frente. E ela respondeu que não saberia como seria o Brasil de segundos à frente. No papel de professor, onde todos os dias você lida com passado, presente e futuro, qual Brasil você acredita que nos espera?

Lucas Quoos – Não faço ideia. O Brasil é um país que não parece país, com um povo que não se vê como povo. Espero que as pessoas percam o medo, lidem com os traumas, fiquem curiosas com novas maneiras de viver e relaxem de vez em quando.

Dani | Hedflow – Quando a Madame Frigidaire virá se apresentar em São Paulo?

Lucas Quoos – Isso é um convite?

Dani | Hedflow – Nos indique 3 livros que seriam grandes peças de teatro.

Lucas Quoos – O inominável (Samuel Beckett), A história do olho (Bataille) e, se puder um conto, O ovo e a galinha (Clarice Lispector).

Dani | Hedflow – Além da ‘Balada de Madame Frigidaire’, qual música do Belchior deveríamos ouvir?

Lucas Quoos – Pequeno Perfil de Um Cidadão Comum


Foto em destaque por Gui Benck

Como o teatro independente está resistindo? Conheça o grupo Madame Frigidaire!

Por
- Nascida nos anos 90 e apaixonada por música e escrita, é fã de Beatles e Rolling Stones. Acredita que escrever é como soltar pássaros de gaiolas. Instagram: @eladaninelo @daniescreve / Twitter: @danislelas