Dona Iracema faz ensaio sobre morte, descaso e saudades na pandemia em ‘Velório’

Potente, afirmativo, politizado, irreverente e, principalmente, autêntico, com uma propriedade rara, a banda baiana Dona Iracema consegue mexer em assuntos espinhosos e imperativos na sociedade atual. No meio disso, um hardcore com sotaque nordestino e elementos de baião e forró, batizado por eles de ‘caatincore’.

Conhecida por apresentações vigorosas e bem-humoradas em festivais e shows, Dona Iracema, de Vitória da Conquista (BA), leva essa energia para ‘Velório’, novo trabalho que nasceu primeiro em álbum – pelos selos Orangeira Music e Digital Ruffo – e se desdobrou em audiovisual, em um filme lançado no Mês do Rock.

O projeto foi um dos selecionados pelo Prêmio das Artes Jorge Portugal 2020 – Premiação Aldir Blanc Bahia, da Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb).

“A gente se permitiu fazer, é a música mais diferente da nossa história. É leve na melodia e forte no sentido da mensagem, um sentimento de saudade. O disco vem carregado de energia e essa música, a última do álbum, presta uma homenagem a todos. É um grito para a uma memória”, adianta Balaio, nome artístico de Gabi, mulher trans, voz e uma das letristas do grupo.

Além dela, o grupo formado em 2012 é composto Diegão Aprígio (vocal e contrabaixo), Pablo Bahia (vocal e guitarra) e Oscar Sampaio (vocal e bateria). Todos trazem no DNA essa pluralidade transgressora do rock e a naturalidade para abordar assuntos atuais e necessários.



“Como nos nossos outros trabalhos, ‘Velório’ tem humor e irreverência por trás de mensagens politizadas, tão necessárias para as causas que defendemos. Dona Iracema trabalha com sinceridade, estamos todos representados ali e queremos fazer disso nossas bandeiras. Um velório é um marco, independente da cultura, é a celebração da vida, respeito a uma memória, um local de homenagem. Da nossa maneira, esse é um trabalho que faz um ensaio sobre a morte, fala de saudade e de dor”, explica Oscar Sampaio.

Com produção musical, gravação, mixagem e masterização, além de sintetizadores e piano do renomado produtor André T, o projeto também conta com produção da Mochi Film, realização da Ruffo, direção de Márcia Espindola (que também assina a direção de fotografia do audiovisual), produção executiva de Jorginho Falcão, edição e motion design de Felipe Wrany e produção de João Paes e Fabrízio Penteado.

Esse elenco ainda ganha reforço nas luxuosas participações especiais dos músicos Armandinho Macêdo, na canção ‘Pendura pelos Ovo’, e Rodrigo Lima (Dead Fish), na faixa ‘Plano Funerário’, duas das dez pancadas presentes no disco.

“Quase não acreditamos quando Armandinho topou participar. A música começa com um axé, mas colocamos ele para ‘fritar no hardcore’ com uma guitarra baiana progressiva. Ficou incrível”, conta Sampaio. “Dead Fish sempre foi uma de nossas maiores referências e a participação de Rodrigo (Lima) é daqueles momentos que ficam marcados. Estamos muito felizes com o resultado”, complementa.

Pensado para também ganhar os palcos do país assim que a pandemia deixar, as faixas seguem quase como um roteiro sincopado de um filme. ‘Estatística’, música de abertura, é irônica, mas bate em questões como o tratamento preconceituoso da sociedade com a comunidade LGBT+ e as questões de gênero, assim como ‘Qual a Graça’, que deixa de lado o humor para tratar do tema de forma direta. ‘Bota pra Bater’ e ‘Bichos da Madrugada’ seguem na mesma linha, com destaque contra a violência pública e velada, mas também pelo sentimento de saudade causado pela pandemia.

‘A Morte do Anjo’ traz uma metáfora da transformação (respeite meu direito de morrer) para reforçar a identidade de quem se assume ser o que é. Já ‘Mão na Cabeça’ reforça a temática atualíssima da opressão do estado por meio de um chiste, um policial na figura de um palhaço bufão. Da mesma forma que o incentivo à resistência e à resiliência são mostrados da maneira mais ‘iracemática’ do disco na música ‘Dedo na Cara’, um deboche inteligente e certeiro.





O FILME – O filme Velório nasce com estética e narrativa própria para fazer um ensaio sobre a morte e o descaso nos tempos de pandemia. A produção audiovisual mostra a banda tocando todas as canções do álbum, sendo que cada uma ganha seu próprio roteiro que ajuda a contar as histórias presentes nas letras das músicas .

“O vídeo complementa o conteúdo de cada canção. Na primeira canção do disco, por exemplo, como falamos sobre necropolítica, utilizamos na edição notícias de jornais sobre assassinatos e mortes. Na canção “A morte do anjo”, temos um momento onde um velório é reproduzido”, explica Gabi. “Na canção ‘Qual a graça’, um palco de stand up comedy é simulado, entre outras coisas”, explica Balaio.


Foto em destaque por Fernanda Meira

Dona Iracema faz ensaio sobre morte, descaso e saudades na pandemia em ‘Velório’

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- Latino-americana, imigrante e jornalista. @sttefanicosta