Escrevo no dia 11 de março de 2022, quando completamos 2 anos do anúncio oficial da OMS a respeito da pandemia. Desde então, precisamos lidar com todas as consequências que vieram… Lidamos com separações, luto, depressão, ansiedade, medo, pânico, noites perdidas, desemprego, inflação, ameaça fascista, queda da democracia… É importante resistir, o real resiste.
Para marchar por dias melhores, e levantar o punho com firmeza, é necessário ter um sonho em que se acredite. E como continuar sonhando num mundo como esse?
Antes de falar de Arnaldo Antunes, gostaria de falar de Eduardo Galeano.
Em uma entrevista, perguntaram a Galeano o que ele tinha a dizer sobre o direito de sonhar, ao que ele respondeu relembrando o que o seu amigo e diretor de cinema, Fernando Birri, disse quando lhe perguntaram o que era a utopia, transcrevo aqui:
“Eu sei muito bem que nunca a alcançarei. Se eu caminho 10 passos, ela se afasta 10 passos. Quanto mais eu buscá-la, menos eu a encontrarei, porque ela vai se afastando a medida que eu me aproximo. Boa pergunta, não? Para que serve? Pois a utopia serve para isso, para caminhar.”
No domingo, 06 de março de 2022 – um dia chuvoso em São Paulo -, Arnaldo Antunes e o pianista pernambucano Vitor Araujo, se apresentaram no Sesc Pinheiros com o show Lágrimas no Mar. O show leva o nome do álbum inédito, que Arnaldo Antunes definiu como “um disco que tem uma vontade engasgada de chorar”. A apresentação contou também com canções do disco O Real Resiste, que foi lançado em 2020, logo em seguida à pandemia pegou a todos de surpresa, o que impediu que shows fossem realizados. A partir daí, Arnaldo e Vitor começaram a criar Lágrimas no Mar.
O público que foi até o Sesc Pinheiros para assistir a apresentação precisava ter tomado, no mínimo, as duas doses da vacina contra a Covid-19, e o comprovante era solicitado na porta do local. De certa forma, isso faz a gente sentir que está dividindo o ambiente com pessoas que desejam um mundo melhor.
A decoração do palco era singela, mas tão bonita, que conseguia passar toda a leveza que a gente sente com o nome do disco, nome que aparecia projetado na cortina vermelha que revelaria os nossos músicos.
Os véus se abriram enquanto Arnaldo Antunes recitava ‘Nenhum Motivo Explica A Guerra’, o que fez com que o público presente se emocionasse e aplaudisse o poeta. No centro do palco, sem adornos, ele vestia um terno preto e bem alinhado, mas pouco ajustado ao corpo. Tudo em Arnaldo Antunes tem movimento e liberdade. O pianista, Vitor Araujo, ficou sentado de costas para o público, sendo o piano o maior destaque visual, por estar de frente para a plateia. Vitor se debruçava sobre o piano enquanto tocava, tornando homem e instrumento uma coisa só.
O público, bastante silencioso, prestava atenção em cada palavra. A música de Arnaldo Antunes tem foco em palavras, e o piano de Vitor Araujo dançou com cada uma delas.
Quis chorar e chorei. Mas também sorri com a simpatia que emanava daquele homem que me parece nunca ter esquecido que já foi criança. Quando Arnaldo Antunes pegou o microfone para dizer que estava com saudades, foi possível sentir que ele estava falando a verdade, era saudade mesmo. O rosto dele brilhava com o brilho que vem de uma alma refrigerada. O público também estava com saudades, e rompia o silêncio para gritar um “eu te amo” – e ele respondia sorrindo. Era o coração de um titã que pulsava no palco. Ao longo desses 2 anos de pandemia, cada pessoa precisou encarar o próprio destino, muitas vezes em solidão. “Todos os dias só, todas as noite só”, como a canção ‘Manhãs de Love’ que abriu o show.
Passamos tanto tempo em telas, mas somos seres de contato, de toque, de calor. O piano melancólico abraçava a canção ‘Enquanto Passa Outro Verão‘, e eu pude sentir que de alguma forma, estávamos todos sozinhos ao mesmo tempo.
Como se narrasse as angústias de todos os corações partidos e pincelasse os últimos anos em notas musicais, foi possível sentir o calor do reencontro entre as pessoas quando Arnaldo recebeu no palco Marcia Xavier, na canção ‘Como 2 e 2′, e dançaram juntos enquanto Vitor Araujo tocava o piano.
Bonito de se ver, leve como uma lágrima no mar.
O show chegou ao fim com a canção ‘Alta Noite‘, e nos fez lembrar que nenhuma pessoa está sozinha.
Arnaldo Antunes e Vitor Araujo foram aplaudidos de pé. Vitor, agora de frente ao público, mostrava um semblante confiante e cheio de carisma, e um Arnaldo sorridente e feliz, contou que aquela noite era muito especial, seu pai estava sentado na plateia.
Comecei falando de Galeano e a importância da utopia, e termino dizendo que são pessoas como Arnaldo Antunes que plantam sonhos nos corações de pessoas como nós. Precisamos sonhar para que possamos continuar marchando.