Em 1990, Alcione cantou “Nós convidamos essa massa aí pra ser feliz ao menos uma vez”. E foi ouvindo ‘Velha Cicatriz’ que chegamos ao hotel para conversar com uma das primeiras mulheres a espalhar o samba para o restante do mundo.
Marrom, como é carinhosamente chamada pelos fãs, celebra 50 anos de uma trajetória que complementa a história da música brasileira, mas não só. Alcione Dias Nazareth é um ícone para as mulheres, pois soube, como ninguém, passar o sentimento feminino mais profundo numa sociedade calcada pelo patriarcalismo.
Depois de interpretar 65 canções em um memorável concerto realizado no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, Alcione chegou para uma digressão europeia com 4 datas em Portugal (Lisboa nos dias 14 e 22 de junho, 15 no Porto, 16 em Águeda e 23 em Funchal) e uma apresentação em Londres no dia dos Namorados. “A primeira vez que saí do Brasil foi para Portugal. O povo daqui já me recebeu com carinho e eu não era a ‘Alcione’ que eu queria ser ainda”, explicou. “Não é aqui (Portugal) que a gente começa tudo mesmo?”.
Cheia de charme e elegância, Alcione nos recebeu com um imenso sorriso no rosto, acompanhada de seu inseparável leque branco. O sol de 30 graus que adentrava a janela do hotel deu o brilho merecido à cantora que faz questão de levar consigo a importância da cultura brasileira em tempos sombrios. “Nós estamos aqui, nós vamos continuar aqui e nós vamos sobreviver a tudo isso. É esse o meu trabalho também.”, pontuou.
Enquanto Alcione nos contava sobre o talento da sua banda e a necessidade de mais apoio das instituições brasileiras às mulheres que estão fazendo samba no Brasil, o telefone tocou. “O que é isso, sou eu? Eu não acredito que esse povo esteja me catando! Quem é que está me catando a essa hora? Vê se não é o Zeca Pagodinho!”, exclamou aos risos. “Ele (Zeca Pagodinho) está atrás de mim desde ontem… Ele disse que eu bloqueei ele, mas onde é que eu tenho coragem de bloquear Zeca Pagodinho?”, revelou quebrando o silêncio e a atenção que pairavam no ar ao compartilhar connosco um momento íntimo de dois grandes amigos. “Mas, eu preciso mesmo falar com ele se não é ele quem vai me bloquear!”.
Depois do momento de pura descontração, foi a hora de lembrarmos da luta que a classe artística está enfrentando neste momento no Brasil. Com a voz firme, Alcione não deixou de dar o recado ao atual governante, Jair Bolsonaro, na qual vem fazendo críticas desde antes do seu mandato. “Infelizmente, nós temos um presidente que não gosta da cultura do Brasil e que detesta os artistas. Mas isso vai acabar. Vai passar. Nós estamos aí lutando. Ninguém pode com a arte. Ninguém pode com o talento. Você não pode querer cercear o talento de ninguém”, complementou sabiamente.
É inegável que presenciar a vitória de mulher negra, nordestina e que se tornou uma das intérpretes mais importantes do planeta nos faz querer mais. Ao falarmos sobre a necessidade da música para uma revolução brasileira, recordamos o filme ‘O samba é o primo do jazz’, de Angela Zoé, que conta a trajetória musical de Alcione. Aproveitei a deixa e perguntei se o rap não seria o “irmão mais novo” e, sem pestanejar, a diva respondeu: “É parente também. Claro que é!”. Com o olhar fixo ao meu, fez questão ainda de enfatizar que o ritmo precisa de mais apoio da mídia. Segundo ela, o samba, de certa forma, já conquistou essa força, mas o rap ainda não. “Eles precisam dessa força, todo mundo junto. Nós temos grandes guerreiros deste género musical, o Emicida, Mano Brown, Falcão…”.
Aos 74 anos, Alcione dividiu com muito carinho alguns dos momentos vividos em Lisboa durante essas cinco décadas de carreira. Olhando para um horizonte de boas lembranças, deu destaque para duas grandes fadistas, exaltando a força do género na história da música e na sua própria formação. “Eu sou muito amiga da Mariza. Ela chegou a cantar comigo aqui no Coliseu. Também sou fã de Amália Rodrigues e Maria da Fé. Inclusive, ela (Maria da Fé) me levou numa casa de fado em uma noite por Lisboa”, recordou.
A cantora também fez questão de reverenciar a beleza única da performance lusitana. “A maneira de se cantar fado não se encontra em qualquer esquina, não. O fado é diferente para cantar. A emissão de voz é outra coisa, e eu sempre apreciei essas mulheres.”.
Antes mesmo do cinquentenário, já era certo que a vida de Alcione se perpetuou. A prova material se concretizou com o anúncio da ‘Medalha Alcione’, a maior comenda do mérito cultural criada pelo governo do Estado do Rio de Janeiro. Ela será entregue a personalidades da cultura no próximo dia 21 de novembro, data que marca os 75 anos da cantora.
E mesmo eternizada, Alcione não deixou de apreciar hábitos singelos e preciosos para a construção de um percurso tão bonito, porém intenso e cheio de desafios. Depois de dividir tantos detalhes de uma história de luta e resistência, a diva do samba brasileiro só pensava em saborear um dos seus pratos prediletos – o famoso bacalhau português.
E num tom de despedida, ela nos mostrou, mais uma vez, por que é reverenciada, agradecendo cada um dos presentes. Para mim, foi uma honra poder dividir esse momento com uma das vozes mais emblemáticas da música. Entretanto, com muita humildade, Marrom retribuiu: “Obrigada minha querida. A honra é toda minha.”