O Rock in Rio teve o seu início com o tradicional dia dedicado ao ‘rock pesado’, ao heavy metal ou, simplesmente, ‘dia do metal’.
O festival, que tradicionalmente acontecia a cada dois anos, teve sua última edição adiada por conta da pandemia mundial do COVID-19. Atrações bem conhecidas do grande público constituíram os nomes dos palcos Mundo e Sunset. Porém, houve muito mais surpresas além do Iron Maiden, aclamada banda britânica dos anos 70, ou do maior grupo de metal progressivo da história, o Dream Theater.
Palcos espalhados pelo Parque Olímpico do Rio de Janeiro, na Barra da Tijuca, mostraram o trabalho veterano de nomes mais undergrounds, como Ratos de Porão e Viper, e de grupos mais novos, como a Crypta e Surra. Apesar de não serem tão conhecidas no mainstream, ambas marcaram sua presença, abrindo definitivamente um espaço para projetos contundentes e com direcionamentos políticos bem definidos.
Entretanto, antes de falar de fato sobre os concertos da edição 2022 do Rock in Rio, que sem dúvidas fizeram parte da história desse lendário festival, vou contar um pouco a respeito da minha viagem até a entrada da Cidade do Rock.
A jornada para um evento desse porte se iniciou muito antes do horário do espetáculo, ainda dentro do carro. Saí de São Paulo numa noite fria, no dia anterior aos shows, para apanhar um ônibus. A intenção era a de acordar já na ‘cidade maravilhosa’. Logo na entrada, me deparei com um enorme congestionamento, que atrasou em quase duas horas a chegada até a rodoviária.
E foi assim que encontrei o outro correspondente da Hedflow, o Angelo Henrike, que me acompanhou nessa cobertura. Tomamos um café da manhã reforçado e nos planejamos para ir à Cidade do Rock. Como ele já havia participado do evento teste e retirado a sua credencial com antecedência, tive que me dirigir ao Shopping Metropolitano Barra, localizado bem próximo à Cidade do Rock (local que serviu de apoio aos organizadores para a retirada de ingressos eletrônicos, convites das empresas patrocinadoras do festival e das credenciais de imprensa).
Saímos juntos do hotel rumo ao Aeroporto Santos Dumont, de onde saia o transporte ‘primeira classe’ em direção aos Arcos da Lapa. Segundo os organizadores, essa era a forma mais rápida para chegar ao festival. Esse foi o trajeto que o meu colega optou.
Outra maneira, sugerida por um militante que fazia panfletagem para candidatos do PSOL-RJ, foi a de pegar o metro na Cinelândia em direção à estação Jardim Oceânico, e de lá prosseguir de BRT, pegando a Linha 50 e baldeando para a Linha 35, até a parada Centro Comercial. Em seguida, a orientação era andar por quase 500 metros até o shopping. Por causa do festival, a população local que utiliza esse meio de transporte diariamente, sofria com as mudanças das linhas.
Adquiri um Rio Pass (cartão de transporte público da cidade) e peguei o BRT Linha 50. O ônibus tinha péssimo estado de conservação. Estava sujo e incrivelmente cheio. Pelo relato dos passageiros, não é comum aquela quantidade de pessoas naquele horário.
Saltei na parada Barra Shopping, mas ainda não chegaria ao destino. Na primeira parte – e a mais rápida do percurso -, algumas crianças que vendiam balas pularam e passaram sob as catracas rumo a uma das portas de acesso aos ônibus.
Crianças (que visivelmente necessitavam de assistência social), de maneira “organizada e ao mesmo tempo desorganizada”, mantiveram-se perto um dos outros e entraram no primeiro transporte que parou, empurrando todos que esperavam em fila. A essa hora, a plataforma já se encontrava abarrotada. Ouvi relatos que diziam: “Se o povo soubesse a força que tem, não deixaria isso acontecer. É ano eleitoral, gente!”. Uma mulher questionou: “Se continuar desse jeito, na próxima sexta, os patrões vão ficar na mão. Poderíamos parar tudo, né?!”.
E do outro lado da plataforma passavam os ônibus mais velozes e visivelmente mais novos com aqueles que seguiam em direção ao evento, sem muitos problemas e com considerável conforto. Foi um verdadeiro ‘esculacho’ com a população local.
Peguei a Linha 35 (que demorou um bom tempo), e, naquela altura, o Angelo já estava dentro da Cidade do Rock se preparando para as primeiras apresentações. O transporte, que estava em piores condições de conservação que o primeiro, não fechava as portas pela quantidade de pessoas. Fui obrigado a me espremer entre os ocupantes e, com uma mão, agarrei a barra de apoio superior e, com a outra mão, segurei a mochila com meus equipamentos fotográficos. No meu corpo, outras pessoas se apoiavam e me empurravam no sentido da porta. Eu e mais dois rapazes fazíamos praticamente o papel das portas que não fechavam. Cada curva da composição, um sufoco.
Depois de aproximadamente 25 minutos, cheguei exausto à parada Centro Empresarial, mas precisava encarar mais 500 metros de caminhada para chegar ao shopping e retirar as credenciais. Rolou uma confusão sobre o local de credenciamento, que era no sítio do Rock in Rio de 2019. O que diferenciou foi a falta de informações sobre o transporte até o festival. Depois de andar duas vezes entre os acessos Leste e Oeste do centro comercial, uma organizadora do transporte para deficientes nos avisou que o translado para imprensa era no acesso Leste, mas do lado de fora do estacionamento. Depois de esperar por mais de 30 minutos, a van apareceu.
Imaginamos que chegaríamos ao festival em uns 20 minutos, mas quando o pequeno ônibus teve acesso a pista principal que nos levaria ao Parque Olímpico, o trânsito simplesmente parou e ficamos presos em um terrível engarrafamento por mais de uma hora. Só entramos na Cidade do Rock quando o Sepultura e a Orquestra Sinfônica Brasileira davam os primeiros acordes de inauguração do palco Mundo.
Black Pantera e Devotos
A abertura do palco Sunset ficou marcada pela pretitude e militância do encontro entre Minas Gerais e Pernambuco. A banda Black Pantera convidou o trio nordestino Devotos para um show pesado, rápido e arraigado de significados.
A Black Pantera desfilou músicas como ‘Padrão é o caralho’, ‘Taca o foda-se’ e ‘Fogo nos Racistas’, que embalaram o ativismo preto e o antirracismo junto ao público. O grupo pediu maior representatividade dos negros na política, chamando a atenção para o fato de três bandas pretas estarem tocando no dia mais pesado do Rock in Rio, e no mesmo palco que o Living Colour subiria logo mais.
Aos berros e em meio às rodas punks formadas apenas por mulheres, se podia-se ouvir manifestações de “Hey Bolsonaro, vai tomar no c*” – frase que foi entoadas por todo o festival.
Já convidados a subirem ao palco, os Devotos, que outrora eram os Devotos do Ódio (nome tirado do título de um livro de Zé Louzeiro) tocaram ‘De Andada’, ‘Eu tenho pressa’ e ‘Abre a Roda e Senta o Pé’.
Encaminhando para o final da apresentação, a Black Pantera homenageou a magnífica Elza Soares com a canção ‘Carne’, enquanto no telão apareciam os dizeres “Vidas Negras Importam“. Fechando a performance de forma apoteótica, mandaram ainda ‘Punk Rock Hard Core’ e ‘Boto Pra Fuder’.
China, apresentador e vocalista da extinta banda Sheik Tosado, também participou do show com as tradicionais indumentárias dos Caboclos de Lança, presentes no Maracatu Rural Pernambucano.
Metal Allegiance
O palco Sunset recebeu esse super grupo que, originalmente, era formado por integrantes de várias bandas de thrash metal da California. Com o passar do tempo, a proposta transformou-se em uma grande homenagem ao metal. Inclusive, uma das primeiras formações contou com a participação do guitarrista do Sepultura, Andreas Kisser.
A Metal Allegiance sempre convida vários músicos desse universo musical. Nesta edição do Rock in Rio, eles contaram com a participação dos vocalista John Bush (Armored Saint/Anthrax), do guitarrista Alex Skolnick (Testament), do vocalista Chuck Billy (Testament), do baixista Jack Gibson (Exodus), além do guitarra Phil Demmel (Vio-lence) e do incrível baterista Mike Portnoy (ex-Dream Theater/Transatlantic/Sons of Apollo). Juntos, revisitaram os clássicos do thrash metal das várias bandas integradas por cada um desses excelentes músicos.
Setlist
- The Accuser (John Bush nos vocais)
- Bound By Silence (John Bush nos vocais)
- Can’t Kill the Devil (Chuck Billy nos vocais)
- Gift of Pain (Chuck Billy nos vocais)
- Dying Song (John Bush e Chuck Billy nos vocais)
- Room for One More (Anthrax cover) (John Bush e vocais)
- Only (Anthrax cover) (John Bush nos vocais)
- Into the Pit (Testament cover) (Chuck Billy nos vocais)
- Alone in the Dark (Testament cover) (Chuck Billy nos vocais)
- Pledge of Allegiance (John Bush e Chuck Billy nos vocais)
Gojira
O Gojira é uma banda francesa originada em 1996. Apesar de terem vindo poucas vezes ao Brasil, me é familiar pela sonoridade e pela admiração autodeclarada ao Sepultura. Meu primeiro show deles foi em 2013, no Monsters of Rock. De lá pra cá, muita coisa mudou.
Passaram pelo próprio palco Mundo, em 2015, foram indicados ao Grammy de Melhor Disco de Rock, em 2016, e, recentemente, lançaram um álbum intitulado Fortitude. Nele, há uma música chamada ‘Amazonia’, que trata da preservação e homenageia os povos defensores da floresta. Inclusive, um dos pontos altos da apresentação, foi quando dois indígenas subiram ao palco enquanto essa canção era executada. Para o público, foi uma demonstração de proximidade e admiração pelo Brasil.
Durante todo o concerto, a multidão se mostrou distante e apática, apesar da apresentação impecável dos franceses. Com pinturas indígenas nos rostos e gritos de “Fora Bolsonaro”, o Gojira rendeu importantes comentários por parte do vocalista, Joe Duplantier. Ele não compreendeu bem a calmaria por parte da plateia, mas aceitou e ainda disse que não existia problema em “estar calmo”.
Completam o Gojira, o preciso e monstruoso baterista (irmão de Joe), Mario Duplantier, o guitarrista Christian Andreu e o baixista Jean-Michel Labadie.
Set List
- Born for One Thing
- Backbone
- Stranded
- Flying Whales
- The Cell
- Grind
- Silvera
- Another World
- L’enfant sauvage
- The Chant
- Amazonia
Bullet For My Valentine
Enquanto os fogos finalizavam a apresentação do grande Gojira (e dividiam a atenção dos presentes no palco Mundo), o BFMV iniciava a sua apresentação no palco Sunset com a música ‘Your Betrayal’. Esse quarteto inglês protagonizou uma das melhores apresentações da noite. Com uma ótima resposta dos fãs, que compareceram em peso, o grupo já chegou com um excelente timbre dos instrumentos e efeitos especiais com labaredas de fogo, que tomaram toda a frente do palco durante a segunda música.
Como foi a estreia da banda no Rock in Rio, quase não houve diálogos e a maior parte do tempo foi muito bem utilizada, levando os fãs ao delírio. Apesar de não haver um rótulo para o som do Bullet For My Valentine (pela época em que esse quarteto se destacou a sonoridade beira o metalcore), há muita influência de bandas clássicas e, possivelmente, de artistas fora do rock. Esse detalhe fez com que muitos adolescentes comparecessem ao concerto com cantorias sincronizadas durante as passagens melódicas.
Foi um uníssono dos fãs em alguns momentos, e muito ‘bate-cabeça’ em outros, mesmo com o espaço limitado pelas grades do palco Sunset.
Chegando perto do final da performance, houve uma debandada geral ao palco Mundo, que já estava preparado para a próxima apresentação.
Set List
- Your Betrayal
- Waking the Demon
- Piece of Me
- Knives
- 4 Words (To Choke Upon)
- The Last Fight
- All These Things I Hate (Revolve Around Me)
- Shatter
- Tears Don’t Fall
- Scream Aim Fire
Dead Fish
Em frente ao palco Mundo, no Espaço Itaú, os capixabas do Dead Fish tiveram a difícil missão de entreter e diminuir a debandada do público para o outro lado. O hardcore rápido, direto e encharcado de militância, despertou a atenção de várias pessoas.
Muitos acharam uma contradição uma banda com um direcionamento político nítido e consolidado, aceitar o convite para tocar em um espaço com o nome de um banco (que, por acaso, é o patrocinador principal do festival).
Liderada por Rodrigo Lima, o Dead Fish conseguiu, em pouco mais de 30 minutos, passar pelos mais de 30 anos de história da banda, entregado uma performance potente e que poderia ter sido realizada com sucesso em qualquer outro palco do Rock in Rio.
Dream Theater
A maior banda de progressive metal da história finalmente tocaria em um evento de proporções gigantes no Brasil, país onde há uma considerável concentração de fãs do Dream Theater.
Depois de uma apresentação para 15 mil fãs no estacionamento do Credicard Hall, em São Paulo, no ano de 2008, e de tocarem no Wacken Open Air (o maior festival de metal do mundo), em 2015, e, recentemente, ganhar o Grammy de melhor Performance de Metal de 2022 com a música ‘The Alien’, o Rock in Rio presenciou uma das melhores aberturas de show de todos os tempos.
O disco mais recente do Dream Theater, A View from the Top of the World, remete ao patamar que os estadunidenses atingiram recentemente. Em um festival como o Rock in Rio, multiverso e com tantas atrações diferentes, a banda poderia ter sido mais assertiva se adotasse a mesma estratégia da performance no Wacken Open Air.
Fechar os trabalhos do palco Mundo não é uma tarefa muito fácil. O repertório se concentrou nos discos ‘recentes’ da banda, não seduzindo tanto os presentes que acabavam de ver um show dos veteranos Iron Maiden, (que contém um público que permanece relutante a surpresas ou mudanças). Até para os fãs mais assíduos, a apresentação do Dream Theater foi um choque.
Talvez o grupo já presumisse que, após a apresentação dos britânicos, os presentes estariam exauridos e que a debandada seria inevitável. O fato foi que o grupo revisitou o terceiro álbum (Awake) com 6:00.
E já na música seguinte, optaram por ‘Endless Sacrifice‘ de Train of Thought (2003), mudando o set list apresentado nos últimos concertos.
As mudanças não pararam por aí.
Tocaram ‘Bridges in the Sky’, do disco A Dramatic Turn of Events, empolgando muito os ‘resistentes’ que cantaram o belíssimo refrão a plenos pulmões. A música ‘Invisible Monster’ já indicava que a apresentação estava chegando ao fim, mas ainda houve tempo para tocarem ‘The Count of Tuscany’. Porém, os presentes já não se empolgavam tanto mais, fazendo com que o grupo optasse por encerrar com o único e ‘real hit comercial’, ‘Pull Me Under’, do disco Images And Words.
Foi o último suspiro para alguns dos presentes em um dia tomado pelo peso e o caos.
Set List
- The Alien
- 6:00
- Endless Sacrifice
- Bridges in the Sky
- Invisible Monster
- The Count of Tuscany (com trecho de “Rhapsody in Blue”)
- Pull Me Under
Texto por Gil Oliveira
Fotos por Gil Oliveira e Angelo Henrike
Edição por Stefani Costa