Noam Chomsky denuncia a farsa da Inteligência Artificial na Web Summit 2022

A sexta edição presencial do evento em Lisboa, que acontece desde 2016 na Altice Arena, teve o seu início na nublada terça-feira do dia 1° de novembro.

Um protesto contra a exploração imobiliária ocorreu logo ao lado de sua entrada principal, às 15:45 da tarde. Na manifestação organizada pelo Habita65 Associação pelo Direito à Habitação e à Cidade – lia-se faixas com frases do tipo: “diz um algoritmo preciso: 1 nômade digital é igual a muitos nômades forçados.” E ainda: “1 ingresso da web summit é maior do que o nosso salário mínimo.

Outro fator preponderante para a organização do ato foi a indignação em relação à facilidade de se obter um visto no país como ‘nômade digital’ caso esse receba um salário próximo de 3 mil euros mensais, ou como investidor que compre um imóvel (Golden Visa) acima de 500 mil euros, enquanto mais de 200 mil imigrantes e trabalhadores comuns esperam na fila do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) por uma autorização de residência.

Entrevista da Rita Silva, uma das representantes da associação Habita!, à jornalista
Stefani Costa logo na entrada da Web Summit 2022


A abertura da feira contou com Paddy Cosgrave, co-fundador da Web Summit, fazendo questão de frisar que uma forma de ajudar na situação entre Rússia e Ucrânia seria parar de financiar ‘oligarcas russos’.

Enquanto irlandês, Cosgrave citou com ar de reprovação o Ministro das Relações Exteriores da Irlanda, Simon Coveney, ter celebrado a suspensão de sanções por parte de Donald Trump a esses tais ‘oligarcas’ da Rússia enquanto ainda estava na presidência dos Estados Unidos, em 2019.

Porém, se há um real interesse pelo fim dessa guerra na Ucrânia e pela paz mundial é de suma importância expôr lobbies, consórcios e bilionários estadunidenses, como o Robert Mercer, envolvidos com a extrema-direita e consequentemente com políticas que culminam em armamentismo ao invés de diplomacia.

Quando mísseis fabricados nos Estados Unidos são fornecidos à Arábia Saudita ou aos Emirados Árabes para bombardearem o Iêmen, nenhuma declaração é feita e com o mesmo grau de reprovação e destaque.

Russos foram também proibidos de participarem dessa edição de 2022 da Web Summit, mas nenhum estadunidense sofreu tal interdição por conta de crimes de guerra dos EUA. O fato é que medidas assim só fazem aumentar a russofobia, essa mesma que já é demasiadamente difundida através da mídia hegemônica ocidental.

Conforme dados apurados pelo Grupo de Estudos e Pesquisa sobre os Estados Unidos (GEPEUA, perto de 40% do orçamento militar em todo o planeta, os Estados Unidos da América gastam mais na indústria da guerra do que qualquer outro país. O orçamento militar para 2022 chegou a 778 bilhões de dólares. Em 2023 esse número pode ser acrescido para 813 bilhões.

Outros dados muito relevantes a serem considerados: de 1975 a 2018, a participação na renda de 90% dos estadunidenses caiu de 67% para 50%, enquanto a do 1% mais rico subiu de 9% para 22%.

Em um mundo onde a insegurança alimentar segue atingindo níveis alarmantes, gasta-se cada vez mais em maquinários feitos com finalidade de matar.

“Muitas instituições ganham dinheiro com a miserabilidade”

‘Fome de Tudo’ é o projeto idealizado pela atriz Úrsula Corona, que também é ativista e embaixadora da Organização das Nações Unidas no Programa Mundial de Alimentos – Foto: Victor Souza/Hedflow







Um exemplo de projeto apresentado durante a Web Summit -e que procura utilizar a tecnologia para combater a má distribuição de alimentos no mundo – é o ‘Fome de Tudo’, idealizado pela atriz, ativista e embaixadora da Organização das Nações Unidas (ONU) no Programa Mundial de Alimentos, Úrsula Corona. Através da SAVEadd, o movimento “identifica os problemas do mundo” para que seja possível desenvolver tecnologias próprias de solução.

“Mais de 800 milhões de pessoas no mundo estão passando fome e o problema não é falta de comida, é desperdício. Nossas tecnologias entram nesses lugares para dar rastreabilidade, gestão e direcionamento de escolhas de regras para o negócio. Assim, a gente consegue pegar tudo que pode vir a ser excedente e, de forma inteligente e programada, fazer a doação ou a venda social do alimento. Já estamos operando em Recife e em toda região nordeste do Brasil, iniciando a implementação nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, além da expansão para a região Centro-Oeste. Nosso plano agrega o produtor e o supermercado, fazendo esse rastreio com quem pode vir a ser um consumidor, seja uma ONG ou uma instituição, mas tudo de forma segura. Porque entre o ponto A, que é o doador, e o ponto B, que é o vendedor, pode haver problemas no meio do caminho, como, por exemplo, a contaminação cruzada, que pode colocar a vida em risco.”, explica Úrsula.

Atualmente, só no Brasil, são mais de 33,1 milhões de pessoas sem ter o que comer. Somente na região Sudeste, entre novembro de 2021 e abril de 2022, 6,8 milhões de pessoas no estado de São Paulo e 2,7 milhões no estado do Rio de Janeiro estão sofrendo com a falta de alimentos. Outra realidade cruel é a situação da infância no país . A fome atinge em cheio os domicílios de crianças com menos de 10 anos, onde a insegurança alimentar moderada ou grave está acima de 40% em todos os estados da região Norte e a 7 dos nove estados do Nordeste. Os dados são da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN).

“A maior prova é que o governo atual, que está com prazo de validade para acabar, implementou no Brasil uma ignorância com muita violência. Como é possível cortar infinitas verbas, apoio e incentivo para as nossas pesquisas? Nós somos uma tecnologia brasileira que não tem apoio do Brasil. Temos o Instituto de Tecnologia e Inovação da Suécia que nos apoia e a WFP (Programa Alimentar Mundial da Nações Unidas) em Roma, entre outras organizações. Enquanto no Brasil, só foi possível chegar até aqui graças ao Sebrae, que conheceu a nossa tecnologia e acelerou o processo, e à SP Investe (agência de investimentos do Estado de São Paulo)”, desabafa.

Agora, com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Úrsula espera que os rumos e a valorização em tecnologia e pesquisa no Brasil voltem a ser levados à sério. “Ainda temos um ministro que diz que não existe fome no Brasil, então não é possível nem criar uma ponte de relacionamento”, afirma a ativista em referência ao Ministro da Economia do governo Bolsonaro, Paulo Guedes. “Eu espero que o próximo governo compreenda que a tecnologia pode ser uma ferramenta de transformação e exportação. O que não pode é a fome ser tratada como assistencialismo porque existem muitas instituições que ganham dinheiro com a miserabilidade. E é por isso que não existe interesse real em acabar com a fome.”

No mais, a sequência do evento contou também com o fundador da Wikipedia, Jimmy Wales, falando que há muitas coisas descentralizadas acontecendo. Hoje em dia existe um uso muito grande de proxies espelhados e isso acaba muitas vezes acarretando em conteúdos não oficiais e sem fontes confiáveis. Ele complementou salientando que colocará esforços em criar plataformas que não sejam somente baseadas em número de likes e visualizações, mas sim em conteúdos que sejam indicados ao público em geral conforme o endosso de gente séria e gabaritada a fim de gerar engajamentos mais esclarecedores e educativos.

Também esteve presente na feira o fenômeno brasileiro da produção audiovisual Konrad Dantas, mais conhecido como Kondzilla, dono e diretor do maior canal de música da América Latina e o 3° maior do mundo. Ele lembrou da importância de se investir na educação dos jovens das favelas e comunidades do Brasil:

Vou ajudar a minha comunidade no Guarujá porque eu cresci lá. O Guarujá tem muitos talentos. Eu gostaria de ampliar as vozes desses jovens para outras pessoas. Há aquela coisa de que na favela todos querem ser jogadores de futebol ou cantores, mas a favela tem muitos talentos… Não necessariamente cantores e jogadores de futebol. Penso que vou ser o agente transformador para as pessoas das favelas no Brasil.

Noam Chomsky e a farsa da Inteligência Artificial

Painel com Noam Chomsky e Gary Marcus na Web Summit 2022 – Foto: Victor Souza/Hedflow



O encerramento da Web Summit deste ano foi impactante com o painel ‘Refutando a grande mentira da Inteligência Artificial’ com a participação do linguista, filósofo e cientista cognitivo Noam Chomsky e o cientista de inteligência artificial, Gary Marcus.

“Tudo isso é uma grande mentira”, disse Noam Chomsky, convidado especial para esse último painel acerca de tecnologia da Web Summit 2022. Chomsky, no alto dos seus 93 anos, é conhecido como ‘o pai da linguística atual’. Ele debateu com o cientista Gary Marcus, fundador da Robust AI e professor de Ciência Neural da Universidade de Nova York.

“Os sistemas de IA não dominam a fala”, disse o filósofo. “Na verdade, eles violam os princípios básicos da linguagem. Conseguem juntar palavras, mas não entendem a relação entre elas e, certamente, não compreendem o mundo que dá sentido a tais palavras.”

Gary Marcus concordou e comparou esses sistemas de linguagem a aplicativos de celular que completam as frases à medida em que se digita. “É o mesmo princípio, mas ampliado milhões de vezes. Sistemas como LaMDA ou GPT-3 simplesmente juntam palavras com base em trilhões de diferentes combinações que viu em seu banco de dados. Porém, não entendem uma sílaba do que acabaram de dizer.”

Segundo Marcus, o sistema não está apto a perceber, por exemplo, que a ordem das palavras pode alterar o sentido da frase, ou até memso qual a utilidade dos adjetivos. “Se você pedir para ele colocar a folha azul em cima da amarela, existe uma boa chance de que ele coloque a amarela acima da azul. E, quando alguém pergunta quem é o presidente dos Estados Unidos, ele responde ‘Donald Trump’, simplesmente por ser o nome que consta mais vezes no banco de dados.”

A ideia de que a IA poderia ser capaz de conversar indigna Chomsky, que passou a vida pesquisando sobre a ciência da cognição e buscando respostas para questionamentos como: De onde vem a linguagem humana?”, “Por que falamos dessa maneira?” e “Qual a relação entre o mundo e a linguagem?”

“Havia uma esperança de que a inteligência artificial pudesse contribuir com a ciência e ajudar a responder essas perguntas fundamentais para o entendimento do ser humano”, disse Noam. “Mas, esses sistemas que estão aí não fazem nada disso. Eles não distinguem entre uma palavra e o seu significado. É simplesmente um truque. E um grande desperdício de recursos.”

No ponto de vista de Gary Marcus, a questão é bem mais profunda e coloca em dúvida até mesmo as direções tomadas em relação à inteligência artificial. “Quando os estudos sobre IA começaram a surgir, havia um objetivo claro: em primeiro lugar, entender como funciona a inteligência humana, para depois construir sistemas sobre isso.” Em vez disso, acrescenta, as empresas passaram a adotar outro modelo, de machine learning, onde as máquinas simplesmente são alimentadas com enormes quantidades de dados. “E daí espera-se que a máquina crie um sentido a partir disso. Não vai acontecer, porque ela não é capaz de fazer isso.”

O caso da linguagem é bastante representativo para Marcus. No caso dos seres humanos, disse ele, o que se ensina primeiro é um sentido, algo que se quer expressar… Só então vêm as palavras. “Além disso, já existem provas de que o ser humano tem um conhecimento anterior, uma percepção do mundo, que lhe permite desenvolver a linguagem. O computador teria que começar isso do zero, sem ter uma percepção do mundo que o cerca. Simplesmente não sabemos se é possível.”

A concepção de que a inteligência artificial está se aproximando cada vez mais da mente humana não é apenas uma mentira, dizem os especialistas, é uma mentira perigosa. “Quando você conversa muito com esses sistemas, eles acabam te dando o que você quer, apenas para seguir a conversa. E, no processo, mentem, produzem desinformação, sem saber que estão fazendo isso.”

Se as corporações forem capazes de vender para os seus consumidores finais versões personalizadas desses sistemas de linguagem, o que teremos será um imenso motor de desinformação em movimento. “Pode ser terrível para a sociedade e para a democracia”, falou Gary. E mais: há um risco de as pessoas começarem a acreditar nas máquinas como se elas fossem amigas suas. “Em breve, vamos começar a ler histórias sobre pessoas que cometeram suicídio porque seguiram um conselho da máquina, ou sofreram um acidente porque foram mal orientados pela IA”, afirmou o cientista.

Chomsky e Marcus vislumbram, porém, uma alternativa: transformar radicalmente e por completo os rumos da inteligência artificial. “O certo é olharmos mais para os seres humanos, para o nosso conhecimento acumulado, especialmente o abstrato, o simbólico. E criarmos um grande banco de dados de modelos de mundo. E só depois alimentar a IA com tudo isso”, disse Marcus.

Já para Chomsky, é preciso dar às máquinas chances semelhantes as que damos às pessoas. “A IA precisa em primeiro lugar aprender a navegar neste planeta, entender como funciona a linguagem, o pensamento, quais são as nossas conquistas científicas e intelectuais, como são os nossos esforços para entender esse mundo. Isso seria um bom começo.”

O linguista explica que o objetivo principal, inicialmente, era usar a capacidade do IA para aprendermos algo de cognição, ou seja, como o cérebro humano pensa, mas esse objetivo foi substituído ao longo dos anos.

Gary Marcus chegou a falar ao público da Web Summit que a inteligência artificial seguiu um mau caminho ao se afastar da linguagem do ser humano. Seguir uma base de dados antiquada, baseada em opiniões difundidas estruturalmente, por exemplo, “poderia perpetuar preconceitos como o racismo e machismo”, disse o cientista. 

A inteligência artificial tem também feito pessoas gastarem recursos desnecessariamente, acarretando no aumento do consumismo, além desse ter se dado “com coisas desnecessárias ou que não funcionam”, referindo-se a carros autônomos da Tesla. “Esses não funcionam bem. Estão tentando os desenvolver há tanto tempo e, ainda assim, falham”, complementa Gary.

Espera-se que, pelo menos, até o ano de 2028 a Web Summit deva mesmo continuar sendo realizada na capital portuguesa.


Texto por Fernando Araújo e Stefani Costa
Fotos por Victor Souza


Noam Chomsky denuncia a farsa da Inteligência Artificial na Web Summit 2022

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