Roger Waters entre o caos e a ternura


A vida é feita de escolhas e Roger Waters optou por contestá-las. O músico trouxe consigo muitas questões que nos permitem (ou não) viver em sociedade. “This is not a Drill” poderia ser uma conversa de boteco ou uma sessão de prestação de contas na ONU. Entretanto, segundo o próprio, trata-se da sua última turnê pelo mundo em forma de “apelo ao amor, à proteção e à partilha do nosso precioso e tão precário planeta Terra”.

Roger Waters fez o seu primeiro concerto do itinerário europeu na sexta-feira (17) em Lisboa. Com duas datas na Altice Arena, o músico britânico já enfrentava fortes críticas antes de chegar em Portugal. Por não se alinhar ao discurso da OTAN e dos EUA em relação à guerra na Ucrânia e por defender a luta do povo palestino contra o apartheid promovido pelo Estado de Israel, Waters foi acusado de ser antisssemita.

Há duas semanas foi afrontado por uma carta da Comunidade Israelita de Lisboa que repudiava a apresentação do músico, afirmando que ele possui “uma visão do mundo apoiada na intolerância, no discurso de ódio e na xenofobia”.

Mesmo sabendo que Roger Waters perdeu o pai para uma bomba nazista em uma praia italiana durante a Segunda Guerra Mundial, os governos locais de Frankfurt (Alemanha) e Cracóvia, (Polônia), também decidiram cancelar os seus concertos. Apesar de afirmar que recorrerá de todas essas decisões na justiça, é inegável o esforço e a tentativa de barrarem a maior arma que Waters possui: a sua música.




“Em uma guerra nuclear todos morrem. É a situação mais perigosa agora para nós, para a raça humana. Isso sem mencionar as outras espécies de animais, árvores, flores e seja mais o que for. Estamos atravessando um dos tempos mais perigosos de todos que já passamos, por causa de toda essa besteira dos Estados Unidos com a Rússia e a Ucrânia. Isso é insuportavelmente perigoso para todos nós!”, disse em um dos seus momentos de interação com a plateia durante a primeira noite das apresentações agendadas na capital portuguesa.

Além da excelente experiência sonora e da incrível qualidade dos oito exímios musicistas na banda, o ex-Pink Floyd, além de contar a sua própria história, denunciou em sua performance vários crimes contra a humanidade.

Com projeções muito bem elaboradas e de forte impacto, nem o eco da arena foi capaz de impedir a potência dos efeitos audiovisuais. Entre riffs de guitarra e tiros de metralhadora, o público também foi compensado pelo timbre suave das backing vocals que se misturavam às cadências das notas de todos os instrumentos rigorosamente bem regulados.

Com 30 minutos de atraso o palco no formato 360º foi dividido em quatro (por um telão gigante que planava ao som de ‘Comfortably Numb’) abrindo espaço para ‘The Happiest Days of Our Lives’ e a clássica ‘Another Brick In the Wall’. Nesse momento, todas as pessoas já se encontravam completamente hipnotizadas pelos artefatos que se mantiveram presentes nos 120 minutos de espetáculo.




Durante a música ‘The Powers That Be’ os nomes de vários ativistas assassinados de forma brutal em diversas localidades do planeta foram tomando conta dos grandes ecrãs. Entre a extensa lista apresentada aos portugueses, estava o nome da brasileira Marielle Franco (mulher negra, nascida e criada na favela da Maré, militante dos direitos humanos e eleita vereadora em 2016 pelo Rio de Janeiro).

“Eu tenho uma ideia de que todos carregamos dentro de nós, seja em nossas memórias, em nossos corações ou até mesmo em nossas almas, um lugar seguro; eu chamo isso de amor. Se vocês saírem para beber alguma coisa, talvez possam encontrar pessoas… Amigas ou estranhas também. Vocês poderiam falar umas com as outras, que é a coisa mais importante que poderíamos estar fazendo aqui, agora mesmo, e em todo o mundo. Falem umas com as outras. Poderia ser sobre a Ucrânia, obviamente, mas sobre muitas outras coisas.”, discursou antes de ser ovacionado pela audiência que preenchia todos os cantos do recinto.

Para destacar os crimes de guerra cometidos pelos EUA na Nicarágua e em outros países, a declaração de despedida de Ronald Reagan (1989) abriu a canção ‘The Bravery of Being Out of Range’ juntamente com os números das mortes causadas nos governos de copiosos presidentes estadunidenses como Bill Clinton, George W. Bush, Barack Obama e Joe Biden.


Discurso de despedida do ex-presidente dos EUA Ronald Reagan em 11 de Janeiro de 1989: “Uma vez que se começa um grande movimento, não dá para dizer onde ele vai acabar. Nós queríamos mudar uma nação, mas, ao invés disso, mudamos o mundo”



Ao tomar posse do belíssimo piano disposto em palco, Roger Waters deu um gole no mezcal (bebida mexicana) ao apresentar a primeira versão de ‘The Bar’ da noite, música escolhida para homenagear os indígenas de uma das poucas reservas de nativos localizada entre os estados da Dakota do Norte e do Sul.

“Mencionei duas mulheres, uma desesperançosa negra das ruas de algum local dos Estados Unidos e a outra a Dakota Sioux, americana nativa de um lugar que agora é muito conhecido nos EUA, o Standing Rock, pela resistência contra a extração de petróleo naquela terra.”, explicou ao fim da canção que começou com um pequeno erro de execução, mas que ninguém se importou. “É o primeiro show da turnê europeia.

Previamente ao encerramento do ato de número 1, Roger Waters fez um passeio por sua própria trajetória na música, iniciada na década de 60. Enquanto imagens dos amigos e ex-integrantes do Pink Floyd eram exibidas no telão, o músico embalou de uma só vez ‘Have a Cigar’ e a emblemática ‘Wish You Were Here’, proporcionando um momento de forte emoção.

Em ‘Shine On You Crazy Dimond’, Waters mergulhou em pura nostalgia para relatar como conheceu Syd Barrett (guitarrista e um dos fundadores do Pink Floyd), além de ter dividido a frustração que foi o seu primeiro casamento.


Pink Floyd na década de 60



Hipnotizados por uma espécie de catarse coletiva, o público foi presenteado com uma chuva de ovelhas no decorrer de ‘Sheep’, que acabou se transformando em um tributo ao escritor George Orwell.

No início do segundo ato do espetáculo, um porco inflável grafado com a frase “Steal from the poor, give to the rich” (Roube dos pobres e dê aos ricos) flutuou sobre as cabeças das milhares de pessoas que já se demonstravam ávidas por mais. Foi quando Roger Waters apareceu vestido de militar com uma metralhadora nas mãos insuflando a multidão durante a canção ‘In the Flesh’.

No ápice do show foi a vez de ‘Run Like Hell’ aparecer junto das imagens dos dois repórteres da Reuters sendo abatidos pelo exército estadunidense em Bagdá. Como um soco no estômago, a “deixa” de que seria o momento para falar sobre Julian Assange estava dada.

Em 2010, ao lado de Chelsea Manning, o jornalista da Wikileaks publicou mais de quinhentos mil documentos comprovando os crimes dos EUA durante a invasão do Iraque e do Afeganistão. O editor australiano permanece preso no Reino Unido, sob tortura, enquanto luta por sua liberdade e pela não extradição ao país que o acusa injustamente de ser um “espião”.




Apesar de todas as menções a respeito dos milhões de refugiados espalhados pelo mundo e das mulheres que lutam pelo simples direito de existir, a mescla de sentimentos entre euforia e indignação se faziam presentes antes mesmo que o público soubesse que ‘Déjà Vu’ seria a trilha escolhida para abordar temas tão difíceis. O Comitê ‘Solidariedade com a Palestina’ já distribuía na porta do local comunicados a respeito da importância do boicote ao Estado de Israel.

Dizendo que tocar para as pessoas naquela noite estava sendo “um prazer enorme”, Mr. Waters também dividiu os holofotes com os seus grandes parceiros de banda. Afinal, não é todo mundo que pode contar com a talentosa presença de Jonathan Wilson.

O multi-instrumentista virou os holofotes para si ao interpretar com voz e guitarra a clássica ‘Money’, acompanhado pelas insígnias vozes de Shanay Johnson e Amanda Belair. Já em ‘Us and Them’ o tom eufônico do saxofone de Seamus Blake se juntou para completar a melancólica sinfonia seguida pelas canções ‘Any Colour You Like’, ‘Brain Damage’, ‘Eclipse’ e ‘Two Suns in the Sunset’.




Como num gigantesco bar, Roger se aproximou de seus parceiros de banda para um novo brinde de mezcal em torno do piano. Ele aproveitou o momento e confessou ter roubado algumas palavras da letra de ‘Sad Eyed Lady of the Lowlands’ do amigo Bob Dylan, antes de lembrar do irmão mais velho (falecido recentemente) e dedicar a segunda versão ‘The Bar’ à sua esposa Kamilah Chavis. “Ela nem sempre vem, mas hoje está aqui. Essa é pra você.”

Mesmo oferecendo uma apresentação cheia de mensagens desconcertantes para aqueles que ainda permanecem “perdidos” no tempo e no espaço da realidade capitalista, Roger Waters também soube trabalhar os sentimentos mais profundos de quem resolveu mergulhar em seu universo de questionamentos.

Ao resgatar a memória do seu pai através de uma imagem da sua família em preto e branco, o músico marchou com todos os integrantes da banda pelos quatro cantos do palco como forma de agradecimento pela comunhão com aqueles que também aceitaram encarar a realidade sem perder a ternura.


‘Outside the Wall’ foi a música escolhida para o encerramento da apresentação de Roger Waters




Setlist Roger Water – This is Not A Drill Tour (Lisboa)
Comfortably Numb
The Happiest Days of Our Lives
Another Brick in the Wall, Part 2
Another Brick in the Wall, Part 3
The Powers That Be
The Bravery of Being Out of Range
The Bar
Have a Cigar
Wish You Were Here
Shine On You Crazy Diamond (Parts VI-VII, V)
Sheep

Setlist 2:
In the Flesh
Run Like Hell
Déjà Vu
Déjà Vu (Reprise)
Is This the Life We Really Want?
Money
Us and Them
Any Colour You Like
Brain Damage
Eclipse
Two Suns in the Sunset
The Bar (Reprise)
Outside the Wall



Texto, fotos e vídeos por Stefani Costa
Foto em destaque Live Nation

Roger Waters entre o caos e a ternura

Por
- Latino-americana, imigrante e jornalista. Twitter: @sttefanicosta