Além de um grande músico, Geraldo Azevedo também é um bom contador de histórias. Com uma trajetória marcada por 5 décadas de sucesso, o artista brasileiro regressa à terra de Camões para dois concertos que serão dedicados ao neto, nascido recentemente na cidade do Porto. “Foi uma dádiva ele nascer na mesma época em que estou indo a Portugal para fazer dois shows. Vou poder conhecê-lo e homenageá-lo”, contou com um sorriso de orelha a orelha ao dividir um pouco da sua rica história de vida com a jornalista Stefani Costa.
Apesar da brasilidade de seus arranjos e da poesia entrelaçada à memória do Brasil, o pernambucano fez questão de lembrar de sua forte ligação com a cultura lusitana, principalmente ao falar da mãe, Nenzinha do Jatobá, e de suas raízes que navegam pelas águas do Rio São Francisco e culminam nos mares de Portugal. “Eu faço arte para dar dignidade à humanidade. É uma coisa quase divina, pois tudo que se faz com a Cultura é para isso.”
Descobriu desde cedo que, na coletividade e no trabalho com amigos, havia um belíssimo caminho para trilhar. “Essa coisa de fazer parceria é algo que eu gosto muito”, disse ao dividir um pouco sobre o seu mais recente projeto (‘Violivoz’) ao lado do músico Chico César e recordar grandes momentos ao lado de Alceu Valença, Zé Ramalho e Dorival Caymmi, dentre tantos outros.
Sobre um possível futuro presente, a certeza de que vai gostar das canções de Salvador Sobral, ao desejo de ouvir suas composições na voz de Carminho. “Fico sonhando com o dia em que ela vai cantar uma música minha”.
Perseguido, preso e sobrevivente da tortura durante os anos de chumbo no Brasil, Geraldo Azevedo apostou no seu talento nato para ultrapassar dias tão difíceis. “Na verdade eu fui sequestrado com muita violência. E foi aí que cheguei a conclusão de que eu precisava ficar famoso”.
GERALDO: E aí, Stefani!
STEFANI: E aí, Geraldo. Tudo bem?!
GERALDO: Agora ficou bom demais! É um prazer imenso falar com você para tão longe, né? Mas, em breve estarei por perto.
STEFANI: Sim, e estamos todos na expectativa desse dia! Falando nisso, você se recorda da primeira vez em que esteve aqui em Portugal? Quais foram as suas impressões ao visitar esse país tão ligado à nossa história?
GERALDO: Sim, isso é muito forte. Mas, olha, eu não me lembro exatamente a data… Acho que foi na década de 80. Teve um festival… Aliás, não era um festival, era um Congresso da Língua Portuguesa onde juntaram todos os jornalistas. Inclusive, eu fui contratado pelo Sindicato dos Jornalistas aqui no Brasil, em Brasília. Era um encontro de profissionais da língua portuguesa onde cada país lusófono (Cabo Verde, Moçambique, Angola, Brasil e Portugal) tinha sua representação. E eu representei o Brasil. Foi maravilhoso e aconteceu no Teatro com o nome de Maria, se não me engano. Foram várias apresentações belíssimas. Depois, eu tive outras oportunidades de estar por aí. Já estive em turnê europeia por Londres, Alemanha e passando por Portugal também. O mais recente foi com ‘O Grande Encontro’ (projeto que reúne Geraldo Azevedo a Alceu Valença, Zé Ramalho e Elba Ramalho). Fizemos Lisboa e Porto, né? Eu passei alguns dias em Portugal. Se o Brasil já foi parte de Portugal, agora é Portugal que se tornou uma parte do Brasil. O que tem de brasileiro por aí… A minha filha vive aí há mais de dois anos e agora eu já tenho até um neto português. Tenho muitos amigos em Portugal.
A primeira vez que viajei para a Europa foi a países como a Suíça… Fui também a Paris, na França, que era a estrela principal do continente para a gente. Depois foi perdendo, porque Portugal foi ganhando. Agora nem faço muita questão de ir lá. Eu faço questão de passar por Lisboa, porque existe uma conexão em tudo. Até o fato da gente cantar a língua (portuguesa) em si, já é maravilhoso.
Lembro que uma vez passei por uma situação de um show que fui fazer aí. Quando o agente foi passar o meu violão na alfândega, deu um reflexo e ele achou que tinha alguma coisa dentro. Aí eu falei: “mas rapaz, esse violão é maciço, é um Gibson!”. Mesmo assim eu fiquei detido enquanto ele investigava o instrumento. Daqui a pouco eu vejo o cara querendo meter uma faca no violão: “Rapaz, não vai furar meu violão, não! Não tem nada aí dentro não, pelo amor de deus!”. Mostrei o contrato, que por acaso eu tinha um contrato para realizar o show e fiquei lá, esperando. Na época estava passando um jogo do Brasil às 6 horas da manhã. Se eu não me engano, era uma partida de Copa do Mundo. Foi a hora que eu disse “vocês ficam olhando aí que eu vou ficar aqui vendo o jogo”. Depois disso, eles me liberaram (risos). Porém, eu tinha falado que se eles quisessem ficar com o meu violão não tinha problema. Era só levá-lo na hora do show (risos). Agora imagina se fosse num país que não existisse um diálogo? Seria muito complicado, viu? No fim a gente se entendeu.
STEFANI: É que Portugal e Espanha infelizmente são rotas de entrada do tráfico de drogas na Europa. Inclusive, o ex-presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, fez esse mesmo trajeto em um avião da FAB cheio de cocaína, lembra?
GERALDO: Lembro sim. É uma coisa maluca mesmo!
STEFANI: As suas composições permeiam a melancolia e a alegria, a suavidade do violão é a marca em muitas das suas canções. Acho que a música portuguesa, principalmente o fado, também carrega um pouco disso. Você acompanha o trabalho de artistas lusitanos? Há algum nome que você citaria de bom grado para uma eventual parceria?
GERALDO: Um dia desses teve um cantor português que estava aqui falando sobre as minhas canções. Ele ia cantar músicas do Djavan… Eu não consigo decorar o nome de tantas pessoas, é muita gente (risos). Mas, eu tenho muita ligação com a musicalidade portuguesa desde a minha mais remota lembrança. A minha mãe cantava muitas coisas de Portugal. Eu vim de uma família de portugueses, os Azevedo, e, da parte do meu pai, tem os Amorim.
Na última vez que fui a Portugal, a Elba (Ramalho) e eu fomos assistir uma apresentação de fado e foi uma coisa que nos deu um encantamento muito grande, pois nós sentimos, principalmente no Nordeste, onde tem a ciranda, o frevo… Todos esses tipos de música remetem à melodia e à musicalidade portuguesa. Eu comecei a fazer serenata e a coisa mais ligada era o samba-canção, que também tem uma raiz da música lusitana. Eu sou muito ligado com essa raiz da música em Portugal, está dentro de mim. No entanto, é claro que o africano e o português predominam na minha fonte de inspiração.
Sou encantado por aquela cantora, a Carminho. Ela é maravilhosa, fico sonhando com o dia em que ela vai cantar uma música minha. Até pensei, “poxa, se a Carminho cantasse essa música dava certinho na voz dela e eu ficaria encantadíssimo!
Um dia desses passou um cara aqui que ia fazer uma apresentação. Eu não decorei o nome dele não, mas eu fiquei curiosíssimo para conhecê-lo. Acho que é Salvador Sobral. No dia em que ele ia se apresentar, eu também tinha show. Li a matéria sobre esse músico e fiquei louco para assistir. Mas, infelizmente, a agenda bateu uma com a outra e eu não pude conhecer o Sobral. Nessa entrevista que eu vi, ele citava a minha musicalidade e a de outros artistas brasileiros que ele se inspira. Fiquei lisonjeadíssimo. Ao mesmo tempo, essa identidade é mútua. Não tenho dúvidas de que vou gostar de ouvir a música dele.
STEFANI: E falando em parcerias, você tem um projeto lindo com o Chico César, o “Violivoz”. Recentemente ele também esteve aqui em Lisboa e nós batemos um super papo. Como surgiu essa união entre vocês? Existem chances de uma turnê europeia com os dois?
GERALDO: Com certeza, tem muita chance, sim. Até porque o Chico tem um pé aí na Europa até maior do que o meu. Eu nunca mantive essa relação com a Europa com tanta dinâmica assim. Vou de vez em quando, passo um tempo, mas nunca dei continuidade. E você sabe que o Brasil é um país continental, né? Eu amo o Brasil, não tenho nenhuma dúvida sobre isso. Acho essa coisa maravilhosa, da música não ter fronteiras. Ela vai para o lugar que quiser. Em qualquer canto a gente tem essa conexão maravilhosa. Eu já cantei em vários lugares estranhos no mundo e deu certo. A exemplo de Moscou, onde fui muito bem recebido e as pessoas se emocionaram mesmo não entendendo o que eu cantava. A musicalidade domina e as melodias mostram a poesia que existe ali.
Esse projeto com o Chico César é maravilhoso porque eu gosto de parceria. É uma coisa notória dentro da minha carreira. Já fiz vários projetos diferentes: ‘Cantoria’ e ‘O Grande Encontro’ (que surgiu depois de um dueto que eu fiz com o Zé Ramalho). A gente passou dois anos fazendo esse duo e depois fomos apresentar no Canecão, uma casa de shows que existia aqui no Rio. Alceu (Valença) e Elba (Ramalho) foram assistir à apresentação, e, como a gente cantava muita coisa ligada ao repertório dos quatro, as pessoas ficaram gritando “sobe, sobe” quando eu anunciei no microfone a presença deles. Eles subiram e aquilo ali foi o prenúncio desse projeto. Essa coisa de fazer parceria é algo que eu gosto muito!
Mas, voltando ao Chico César: no começo da década de 90 tinha um camarada dele, chamado Carlos, que estava fazendo um disco e me chamou para participar cantando uma música só em voz e violão. Pedi para ouvir a música e ele contou que era de um cara chamado Chico César. “Rapaz! O violão desse cara é muito especial! Se eu for fazer esse violão não vai ser igual a ele. Não dava para importar esse cara? Não dava para ele vir fazer o violão?” Aconteceu e assim eu conheci o Chico César. A partir daí, tive acesso a várias músicas dele, só que ele não tinha disco gravado ainda. Passaram uns dois, três anos e ele lançou o seu primeiro disco. Fiquei num encantamento, porque foi o primeiro álbum só com voz e violão ao vivo. E pelo que notei, o Chico já não era tão desconhecido, pois nas músicas havia um coro muito grande da plateia. Ou seja, ele já tinha um público que cantava as canções dele.
Procurei o Carlos e pedi o telefone de Chico César porque eu iria a São Paulo e queria comprar uns discos dele para presentear algumas pessoas. Quando eu disse a ele que queria comprar, o Chico ficou honrado e me perguntou de quantos eu precisava. Quando eu falei “umas duas caixas”, foi uma festa danada! Uma foi distribuída por todo o Brasil, para as pessoas que eu amava, pois eu queria que eles conhecessem aquele artista novo que estava ali. A outra caixa, por acaso, eu tinha feito uma turnê pela Europa e levei comigo. Divulguei o Chico em tudo quanto era lugar, para os produtores e amigos que eu encontrava, dizendo que era um artista novo e maravilhoso. Falei a ele que eu era o seu maior divulgador (risos). Um tempo depois a gente se encontrou em Los Angeles, EUA, e saímos para jantar. Eu reforcei a ele que o trabalho era muito bom e o convidei para fazer alguma coisa comigo um dia. Chico ficou honrado e topou: “e como a gente faz?” Eu sugeri fazer uma música.
Um tempo depois, de volta ao Brasil, fui fazer uns shows lá em São Paulo em uma apresentação de frevo, algo carnavalesco mesmo. O convidei para assistir e depois do show o Chico me chamou para ir até a casa dele. A companheira dele na época fez um ‘baião de dois’, e, enquanto ela preparava, nós ficamos na cozinha tocando violão inusitadamente. Eu ‘levava’ uma música, ele tocava junto. “Rapaz, nós dois damos um ‘pé danado’! A gente vai ter que fazer alguma coisa!”.
Começamos a marcar os primeiros encontros em 2019, bem no finalzinho do ano. Em 2020, iniciamos os ensaios para que eu pudesse aprender as músicas dele e ele as minhas. A gente não tinha nem ideia de como seriam os shows. De maio em diante, estávamos cheios de datas para as apresentações. Quando terminamos um desses ensaios, ainda em Janeiro, ele me chamou para jantar e eu tive a ideia de mostrar um trabalho feito, que poderia complementar. Quando mostrei, ele sentou, e me perguntou “essa primeira frase aí é assim? Será que dá pra gente usar essas palavras aqui?”. Pensei, olhei, e disse “perfeito, cara!”. Aí pronto, a gente tocou mais e o jantar que estava marcado para às nove aconteceu só meia-noite, pois tocamos até terminar a primeira canção que fizemos juntos.
Depois nós realizamos mais um ensaio no Rio de Janeiro. Quando foi em Março, já havia o fechamento geral por conta da pandemia. A gente se frustrou muito com o fato de não poder realizar o projeto, porque no início achávamos que aquilo acabaria rápido. E eu me lembro de ficar isolado, ligava para o Chico de vez em quando. Um dia, veio a ideia de fazer uma música. Tanto que quando conto essa história, falo que a nossa primeira parceria foi presencialmente e a segunda ‘onlinemente’ (risos). Conseguimos encerrar a canção no mesmo dia. Ficamos no telefone por horas e horas. Fizemos a parceria e sabíamos que no show teríamos duas músicas novas. E foi muito bom! Claro que o show da gente é todo fundamentado nos clássicos da minha vida, mas nós queríamos mostrar alguma coisa nova e inusitada às pessoas. Então a gente só veio realizar esse projeto no finalzinho de 2021.
STEFANI: Em 1985, você foi visionário ao criar a ‘Geração Produtora’ e ser um dos primeiros artistas a lançar um álbum de forma independente, intitulado ‘De Outra Maneira’, e que foi Disco de Ouro. Como você vê a indústria fonográfica nos dias atuais levando em consideração que hoje os artistas fazem ‘singles’ e não álbuns completos? Como é lidar com um mercado onde muitos músicos são negligenciados pelas grandes gravadoras? Inclusive, vários enfrentaram dificuldades durante a pandemia.
GERALDO: Mesmo antes da pandemia, já existia esse processo. Tanto que alguns artistas, como a própria Elba Ramalho, já tinham saído da gravadora e já estavam com o selo próprio, assim como eu. A minha rebeldia foi um pouco assim… Eu sempre fui um criador e fazia os meus discos a partir das minhas criações. E quando falo criações, não são só composições minhas, não. Tanto que eu já gravei com Jackson do Pandeiro, Caetano, Milton Nascimento, Gonzaga… Uma faixa ou outra de vez em quando eu canto, mesmo a base do meu trabalho sendo com as minhas composições.
As gravadoras tinham uma tendência de achar que o “mercado” no momento era baseado em cima do que estava vendendo mais. Assim, elas atribuíam para qualquer contratado aquela verve alí. Só que eu não tinha nada a ver com as coisas do “mercado”, não mesmo. Eu nunca me propus a trabalhar para o “mercado”. Sempre trabalhei para a música, para a coisa cultural. Não tinha essa ligação comercial. Às vezes, isso era um problema nas gravadoras. Cheguei até a ser ameaçado! Se eu não gravasse tal coisa, eles diziam que eu iria “me dar mal”. Não gravei e eles boicotaram meu disco, mesmo. Isso me prejudicou. Eu fiquei indignado, mas sabia que eu não podia ficar submisso a esse tipo de situação, de alguém impor o que eu tinha que fazer para poder “me dar bem”.
Uma vez, fiz um disco e um diretor de mercado de uma gravadora chegou à reunião com todos os outros diretores e falou assim, na minha frente: “Não temos nada que preste nesse disco!”. Eu fiquei chocado! E esse mesmo álbum foi um trabalho antológico na minha carreira. Era um disco que tinha músicas como ‘Dia Branco’, ‘Moça Bonita’, ‘Canta Coração’… E todas viraram sucesso. Tanto que foi o único ano em que eu gravei dois álbuns, pois a gravadora sugeriu que eu fizesse outro disco. Na época, eu disse que tinha muitas músicas e acabei gravando ‘Farol para Todos’. Me deram aval e dinheiro para gastar com propaganda desse trabalho. Só que eu fazia os shows e botava as canções do álbum anterior que ele condenaram. As pessoas iam aos concertos e ficavam encantadas, indo até às lojas à procura das canções que estavam no trabalho anterior, intitulado “Inclinações Musicais”. No fim, o “Farol para Todos” ficou meio encalhado e o “Inclinações” foi um sucesso imenso na gravadora, mesmo o diretor de mercado sendo contra. Inclusive, foi o meu primeiro disco transformado em CD por conta da minha relação com o público, que não é uma audiência baseada em “mercado”. É um público seletivo, sensível, entende? Eu sempre acreditei que tudo no meu trabalho é em função disso. Claro que a gente não pode negar que, hoje em dia, o “mercado” está ligado a essa coisa digital e que as gravadoras também sofreram muito com essa transição. Eu também sou muito romântico, sinto falta do CD. Quando penso em fazer um projeto, sei que a coisa vai para o streaming, mas eu sempre quero ter uma quantidade material para dar às pessoas, com encarte e ficha técnica. Tenho esse romantismo de que a gente tem um conhecimento mais profundo quando é assim. Sou aquele cara que sabe de quem é a música, quem escreveu a letra, o músico que tocou, os responsáveis pelos arranjos… Acho que essa profundidade é muito mais abrangente e vejo que as gravadoras nunca tiveram esse sentimento em relação à obra. Veem isso como ‘produto’ apenas. Já eu, vejo como uma obra de arte eterna. Tanto que algumas canções já ultrapassaram décadas, ‘séculos’ e ‘milênios’ (risos). E a gente vê que hoje em dia, no dito “mercado”, muitos artistas lançam músicas que não ‘ficam’. É tudo muito passageiro e efêmero demais.
Ainda sinto falta das canções com poesia. Adoro um Dorival Caymmi, Cartola, Vinícius de Moraes… Essas pessoas deram um contexto cultural a suas canções, com uma riqueza imensa ligada a outras culturas. É a literatura, a música, o cinema, o teatro, a dança… Acredito que as gravadoras não têm a sensibilidade para enxergar isso. Eu nunca me arrependi de ter me desligado da gravadora. Inclusive, fui seduzido por outra para o projeto “O Grande Encontro”, até porque eu não poderia me responsabilizar de lançar só no meu selo o que envolvia outras pessoas também, né?
Mas, a gente vai até lançar um DVD agora, o Chico César e eu. Nós nem discutimos ainda como será, se vai ser por uma gravadora, ou com a minha produtora. É provável que seja só pelo Chico e eu mesmo, pois não dependemos mais de gravadora nesse sentido. A gente já pode fazer tudo que uma gravadora faz.
STEFANI: Em ‘Caravana’ você retrata a respeito da trajetória de muitos nordestinos que saíram do sertão rumo à “cidade grande” em busca de uma vida melhor. Essa narrativa sobre migração tem tudo a ver com a realidade vivida em Portugal atualmente, um país formado por imigrantes, sendo a comunidade brasileira a maior de todas. Você poderia contar um pouco sobre essa composição pensando também nesse novo contexto?
GERALDO: Essa música abriu um espaço muito grande na minha carreira e na minha vida pessoal. Eu já tinha feito um disco com o Alceu, pois essa canção é minha e dele, e a letra é do Alceu. A parceria com ele, vamos dizer assim, foi também o prenúncio da minha vida fonográfica. Eu já havia gravado músicas, mas nunca tinha registrado algo assim em conjunto. E essa canção teve uma abertura muito grande porque ela entrou em ‘Gabriela Cravo e Canela’. Inclusive, ela foi gravada para a abertura da novela, nós fizemos um arranjo que dava 2 minutos, exatamente o tempo do letreiro. E já estava tudo pronto, quando o Dori Caymmi chegou e mostrou ‘Gabriela’, música com letra de Jorge Amado. O Guto (Graça Mello), que era o produtor e responsável pela trilha sonora, disse “rapaz, acho que vai ter que ser essa música aqui”. Aí a minha canção passou a ser uma música incidental, o que foi de uma riqueza imensa. Acho que eu ganhei até mais, pois como ela tem duas partes (aquela cantada com letra e a parte com um coro), ele conseguiu dividir como se fossem duas músicas. Assim, a faixa servia para uma personagem em um momento e o coro também servia a outra. Em todos os capítulos da novela ‘Caravana’ estava lá. Eu cheguei até a fazer um clipe, que na época nem era chamado de “videoclipe”. A gente falava “vamos fazer um Fantástico” (programa da Rede Globo). E esse “Fantástico” eu nunca tive na minha vida, porque houve um incêndio na Globo e eles acabaram perdendo o original. Eu não tinha feito cópia. Assisti no dia da estreia e acabou ficando só na minha memória.
Quando fiz o meu primeiro disco, depois da minha segunda prisão, concluí que eu precisava ficar famoso. Eu já tinha sido detido duas vezes na ditadura. Aquela prisão foi determinante para mim. Me lembro que o Chico Buarque era sempre intimado e coisa e tal. Mas, nas duas vezes em que fui preso… Na verdade eu fui sequestrado com muita violência… Foi ali que cheguei à conclusão de que eu precisava ficar famoso. Eu tinha planejado um disco e a ‘Caravana’ fazia parte de uma suíte que eu tinha composto, ligada à essa transição de imigração que você falou. ‘Caravana’, ‘Talismã’ e ‘Barcarola do São Francisco’ eram convites para viajar, porque essa era a trajetória. É como se fosse a definição do caminho pelo rio até chegar ao mar. “Me leve para o mar…”. Era essa suíte que eu sonhava como uma coisa grandiosa, e que eu consegui realizar com um arranjo de Dorival Caymmi, orquestra e tudo mais. Foi uma coisa maravilhosa pra mim. Essas três músicas marcam demais o começo da minha carreira e eu tenho muito orgulho desse disco. Ele começa até com uma música africana e depois vem essa suíte. Inicia com uma coisa de Angola, porque sempre fui ligado à relação cultural entre Angola, Portugal e Brasil. Tanto que a música (‘Mona Ami’) tem a parte em kimbundu e a parte em português. Em seguida vem a ‘Caravana’ que representa muito a gente, né?
STEFANI: Por que a canção Talismã foi censurada?
GERALDO: Talismã foi gravada no primeiro disco que eu fiz com o Alceu. O arranjo era do Rogério Duprat, com um quarteto de cordas lindo que ele botou. Antes, nós fomos convocados pela “censura” por conta dessa canção em um episódio absurdo. A gente passou a cantar “Diana me dê um talismã, um talismã, viajar…”. Originalmente era “Joana me dê um talismã, um talismã, viajar…”. Aí eles (os censores) atribuíram que “Joana” e “Viajar” eram coisas de maconheiro, em referência à “marijuana”. Eu fui lá com medo, é claro, mas eu tive que negociar. Aí fiz a proposta para mudar o nome da pessoa e perguntei se podia ser, já que não tinha mesmo nada a ver o que eles estavam alegando. Ficamos falando vários nomes até chegar em Diana. “Diana pode”. Aí passou a ser Diana. Hoje em dia canto “Joana” de novo (risos).
Nesse álbum eu tive duas músicas censuradas. A outra, ‘Mister Mistério’, falava de “tupamaros”. Aí eles não deixaram porque “tupamaros” era um grupo de guerrilheiros no Uruguai. Eu tive que renegociar também e tirar a palavra. Mandei outra e eles aceitaram. A censura me perseguiu muito. Mas, a pior de todas foi quando eu fiz aquela música ‘Canção da Despedida’ com o Geraldo Vandré. Ela ficou proibida durante todo o período da ditadura. Eu cheguei a mandar para a censura várias vezes com nomes diferentes, só que não tinha jeito, não passava.
STEFANI: Estamos em Abril, mês que marca a Revolução dos Cravos em Portugal (sendo essa entrevista realizada no dia 19 de Abril). Daqui a alguns dias o seu conterrâneo e presidente do Brasil, Lula da Silva, estará em sessão solene no Parlamento para discursar no dia 25 de Abril. Infelizmente, a extrema-direita também está em ascensão por aqui. Com ideais racistas e xenófobos, muitos “brasileiros bolsonaristas” estão aderindo aos partidos e movimentos que usam discursos ‘fascistóides’. Como você enxerga esse movimento?
GERALDO: Boa lembrança, porque nesse meu primeiro disco eu gravei uma música chamada ‘Cravo Vermelho’. Acho até que eu vou cantá-la de novo quando chegar a Portugal para lembrar disso.
Essa pergunta deixa uma indignação muito grande dentro de mim, porque eu fico impressionado. Vejo como um processo ligado à falta de uma educação mais enfática aqui no Brasil. A gente sofre muito com a carência de um projeto educacional, com escolas melhores, que preservem a nossa memória. Esses discursos à favor de tortura, pedindo uma nova ditadura, é algo que faz a gente ficar muito indignado! Provavelmente, a maioria dessas pessoas não sabe de fato o que se passou no Brasil nesses tempos que duraram por 22 anos… Não sabem. Vai sobrar para elas também, caso elas queiram concretizar o que pensam. Não está certo. A gente tá sofrendo uma involução cultural nesse processo. A única coisa que eu posso dizer é sobre o sentimento de indignação e, ao mesmo tempo, de muito cuidado também. Até porque quando a gente fala sobre essas coisas, nós temos que ter muita cautela. Por vezes as palavras são interpretadas com uma relação de ódio. A gente fala algo óbvio e as pessoas odeiam pelo simples fato de expor algo assim. E eu juro a você: eu não tenho ódio por ninguém. Já fui torturado e nem ódio aos torturadores tenho mais. Tenho até pena, pois essas pessoas viveram aquele processo. E não estou falando isso ‘da boca pra fora’. Claro que tive momentos, depois de ser torturado, de muito ódio no coração. Mas, depois eu me toquei sobre isso. Eu não quero ser igual a essas pessoas. Jamais! Eu perdoo elas. Como Jesus Cristo disse: “perdoai-vos, eles não sabem o que fazem”.
STEFANI: E o que você achou da indicação da Margareth Menezes como ministra da Cultura? Na sua opinião, quais serão os principais desafios dela depois de 4 anos de omissão?
GERALDO: Só de ter a volta do Ministério da Cultura eu já achei maravilhoso, porque você há de convir que a gente pisou em cima da cultura durante quatro anos. A gente renegou como se ela não existisse. Inclusive, aquele papo que a gente estava tendo anteriormente tem a ver com a falta de cultura, pois esse tipo de pensamento exercita a falta dela. A cultura tem que ser cada vez mais celebrada e valorizada para darmos uma dimensão melhor à humanidade, proporcionando uma dignificação do ser humano. A cultura é uma das responsáveis por isso, por proporcionar essa dignidade. Faço arte para dar dignidade à humanidade. É uma coisa quase divina, pois tudo que se faz com a cultura é para isso. E essa volta do Ministério é um grande avanço.
A escolha da Margareth como ministra foi uma surpresa pra mim. Eu achava que seria uma pessoa que não tinha nenhuma atividade no momento. A gente teve a experiência com o Gilberto Gil, músico, ao mesmo tempo artista e ministro. E isso é algo muito difícil de lidar. Chico César foi uma das pessoas cogitadas para ser o ministro da Cultura porque ele foi secretário da pasta no Estado da Paraíba. Ele sabe a carga que é na sua própria carreira. Tanto que ele disse não querer “jamais” misturar as coisas novamente, pois gosta de ser artista. Gostar de ser artista e gostar de ser ministro não dá. Meu pai dizia que ser artista é amar o que você faz, é trabalhar com amor. Então se você vai ser ministro, você tem que fazer um ministério trabalhando com amor. Não dá pra você dividir.
Eu adoro desenhar. Se eu não fosse músico, eu seria desenhista. Não desenho porque eu me dedico muito à música e ela exige essa presença o tempo todo. Então eu fico preocupado se a Margareth vai renunciar um pouco a carreira dela para fazer um ministério enfático ou se vai ficar dividida. Acredito que ela é capaz de reunir pessoas interessantes e espero que ela se dedique o máximo possível, porque o Brasil é um país continental… Não é um “paisinho” não. É um “paisão”!