O vento desconfortável não passou despercebido junto do público que presenciou a terceira edição do festival Jardins do Marquês, em Oeiras. A brisa do mar incomodava porque parecia um vento de mudança. Eram ares baianos, ventania latino-americana. Era o sopro de Dona Canô a dar fôlego a uma das maiores vozes da música brasileira, a da sua filha, Maria Bethânia.
E haja fôlego!
Aos 77 anos, a cantora conduziu o espetáculo com energia e disposição do início ao fim, presenteando o público com a sua voz única, inconfundível e poderosa. Com este ‘axé’, Bethânia e banda fizeram o palco parecer ínfimo — tal e qual as dimensões geográficas de Brasil e Portugal.
Acompanhada pelos batuques da majestosa percussionista Lan Lanh e dos acordes viscerais do jovem violonista João Camarero, Bethânia apresentou uma atuação com o tamanho das milhões de vozes indígenas, negras e imigrantes. Vozes que foram ouvidas através do seu timbre único, inconfundível e poderoso.
A cantora abriu o concerto com ‘Gema’, escrita pelo cantor, compositor e seu irmão Caetano Veloso, que também compôs a canção seguinte, ‘Salve as folhas’. Nesta introdução, o mesmo sopro forte que cruzava o oceano Atlântico e agitava os longos cabelos da artista, era também o que vinha da floresta amazônica e dos suspiros dos orixás.
Com tão vasto e rico repertório, escolher os temas para uma hora e meia de apresentação não deve ter sido tarefa fácil. Sorte do público, que cantou cada canção junto com Bethânia como se todas fossem êxitos.
Convenhamos, é impossível até para os mais inexpressivos permanecerem indiferentes num concerto com temas como ‘Estado de Poesia’, ‘Onde Estará o Meu Amor’, ‘Gostoso Demais’ e ‘Sonho Meu’ (neste último tema Bethânia lembrou a cantora e amiga Gal Costa, que morreu em novembro de 2022), e ainda com interpretações de ‘Cálice’, ‘Sampa’, ‘Noite dos Mascarados’, ‘Tocando em Frente’ e muitas outras composições próprias e de outros artistas.
Ao fim de ‘Cálice’ (escrita por Chico Buarque e Gilberto Gil em 1973, censurada pela ditadura militar no Brasil e presente no álbum ‘Álibi’), Maria Bethânia proferiu em notório tom de alívio a frase “Inelegível! Oito anos. Viva o Brasil!”, levando o público à euforia. Alegria retribuída e repetida em coro: “Inelegível!”.
A artista referiu-se à condenação de Jair Bolsonaro pelo Supremo Tribunal Eleitoral (TSE) por abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação, que o tornou impedido de concorrer a qualquer cargo público até 2030. O ex-presidente brasileiro ainda é alvo de mais de 600 processos.
MEDALHA DE MÉRITO CULTURAL
Após Maria Bethânia se ter despedido do público, o ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, apareceu de surpresa no palco e chamou a cantora para lhe conceder a Medalha de Mérito Cultural atribuída pelo governo português.
Entretanto, Maria também tinha um recado a transmitir. Era o seu próprio sopro a juntar-se ao de Dona Canô, dos imigrantes brasileiros e das mulheres trabalhadoras de todos os países.
Na tradicional convocação feita pela plateia para que a artista regressasse ao palco, Bethânia deixou claro o grito pela liberdade e a expressão do poder feminino com o clássico ‘A-la-la-ô / Chiquita Bacana / Chuva Suor Cerveja’, finalizando com ‘O que é o que é?’, de Gonzaguinha, afinal, viver é “não ter a vergonha de ser feliz”.
Texto por Jorge Filho e fotos por Stefani Costa.