O cenário musical reserva situações curiosas e, em alguns casos, até irônicas. É intrigante observar como bandas com sonoridades semelhantes, influências parecidas e propostas artísticas próximas podem alcançar níveis de popularidade completamente distintos. Um exemplo emblemático é o contraste entre Coldplay e Travis. Formado na Inglaterra nos anos 1990, o Coldplay combinou indie rock e pop de forma a conquistar o mundo, acumulando milhões de vendas e lotando os maiores estádios do planeta. Já o Travis, que também surgiu na década de 1990, na Escócia (parte do Reino Unido), apresenta um estilo de rock suave e acessível. Apesar de conquistar um público fiel e influenciar diversas bandas de indie rock, o conjunto nunca atingiu o mesmo sucesso massivo que o Coldplay, tendo sua popularidade mais associada a singles que integraram trilhas sonoras de filmes e novelas bastante populares nos anos 2000.
Após 11 anos desde sua última apresentação em São Paulo, o influente grupo que ajudou a moldar o indie rock que dominaria o mainstream na primeira década dos anos 2000 — com o vocalista Chris Martin, do Coldplay, afirmando que ‘o Travis foi responsável por criar o Coldplay’ — retornou à cidade para um show na Audio na última terça-feira (5).
Apesar do grande hype gerado pela volta da banda, a procura por ingressos foi relativamente modesta, levando a organização a promover diversas campanhas promocionais para atrair mais público. Felizmente, essas ações surtiram efeito, e, embora o clube não estivesse em sua lotação máxima, o espaço estava bem preenchido, tanto na pista quanto no mezanino. Sem banda de abertura, o aquecimento ficou por conta de uma discotecagem, que embalou os fãs por mais de duas horas enquanto aguardavam o início do show.
Pontualmente às 21h, Fran Healy (vocalista), Neil Primrose (baterista), Andy Dunlop (guitarrista) e Dougie Payne (baixista) subiram ao palco sob uma decoração que remetia a um pôr do sol desaparecendo no horizonte. A cena até gerou comentários bem-humorados entre os fãs na pista, que brincaram dizendo que a banda estava usando a bandeira do Japão como backdrop. O show começou com ‘Bus‘, faixa do mais recente álbum ‘L.A. Times’, lançado em 2024. A recepção inicial foi um pouco morna, sugerindo que nem todos estavam familiarizados com o trabalho mais recente do grupo.
Após a abertura, Fran Healy agradeceu a presença do público e comentou sobre a longa espera de 11 anos desde a última passagem da banda pela cidade. Em seguida, levou os fãs à nostalgia ao revisitar pela primeira vez na noite o álbum ‘The Man Who’ (o maior sucesso comercial do Travis), com ‘Driftwood‘, que colocou a pista para cantar em uníssono.
O set seguiu com ‘Love Will Come Through’, onde Fran promoveu uma interação especial com os seguidores, pedindo que todos balançassem os braços no ritmo da música, criando uma cena emocionante. Na sequência, veio ‘Alive‘, além de ‘I Love You Anyways’, um dos principais singles do álbum ‘Good Feeling’ (1996). Com uma melodia calma e delicadas passagens de violão, a canção deixou o clube em uma atmosfera romântica com suas notas ecoando pelos alto-falantes.
Se a primeira parte do show teve um ritmo mais calmo, contando majoritariamente com canções baseadas em passagens simples em violão, teclados e refrões viciantes, o segundo bloco trouxe um tom mais enérgico, com músicas que exploravam as raízes do indie rock. ‘Good Day to Die’ destacou-se com guitarras mais pesadas e uma batida intensa, revelando influências sutis do grupo estadunidense Weezer. Antes de iniciar ‘Writing to Reach You’, Fran fez uma declaração bem-humorada, admitindo que ‘roubou’ a melodia de ‘Wonderwall‘, do Oasis. A semelhança entre as duas músicas foi notável, e para selar a brincadeira, a banda emendou a canção dos irmãos Gallagher no final. Seria esse o primeiro caso de ‘plágio legalizado’ na história do indie rock?
Na sequência, veio uma sessão com três dos maiores sucessos do Travis: ‘Side’, ‘Sing’ e ‘Closer’. Esta última foi o ponto alto da interação entre artista e público, com Fran entregando o refrão principal para os fãs, que cantaram em coro.
Ao longo do show, Fran manteve um diálogo constante com a plateia, dedicando vários minutos do repertório para conversas descontraídas. Contudo, na reta final, o tom ficou mais introspectivo. Durante ‘Raze the Bar’, ele compartilhou que a música foi escrita como homenagem ao bar Black & White, em Nova York, que fechou as portas após ser um marco para bandas underground como The Strokes e Coldplay e mencionou que ficou extremamente chateado com o ocorrido. Em ‘Gaslight‘, o músico abordou o tema delicado do abuso psicológico, descrevendo como o manipulador faz a vítima duvidar de si mesma, e revelou ter passado por uma situação semelhante. Apesar dos temas pesados, ambas as músicas tinham melodias surpreendentemente animadas, com arranjos de violão e teclado que mais pareciam terem sido feitas para um comercial da Coca Cola ou inauguração de um shopping center.
Para encerrar o set principal, a escolha foi ‘Turn‘, uma música mais barulhenta que fez o público cantar junto. O momento deixou claro que, embora o Travis tenha conquistado popularidade com baladas suaves, são as faixas mais enérgicas e com ‘pegada noisy’ que realmente empolgam os fãs durante as apresentações ao vivo.
Após uma breve pausa, a banda voltou para o bis, misturando músicas menos conhecidas com sucessos como ‘Flowers in the Window’ e ‘Selfish Jean’. O momento mais inusitado veio com um cover de ‘…Baby One More Time’, de Britney Spears. A noite foi encerrada com chave de ouro ao som de ‘Why Does It Always Rain on Me?’, com toda a plateia cantando junto, encerrando o show em clima de nostalgia.
Desde os anos 2000, o indie rock tem se consolidado como um dos estilos mais influentes no mainstream, abrangendo até mesmo a grande cultura popular. Ao assistir ao show do Travis, o público paulistano teve a chance de conhecer as origens desse movimento e testemunhar a ‘fonte’ que serviu como uma das grandes influências para grupos contemporâneos que hoje lotam estádios ao redor do mundo.
Fotos – Gustavo Diakov (Profissional credenciado pelo site “Universo do Rock”, que gentilmente compartilhou seu trabalho com a Hedflow)
Setlist
Bus
Driftwood
Love Will Come Through
Alive
I Love You Anyways
Good Feeling
Good Day to Die
Writing to Reach You
Side
Closer
Sing
Re-Offender
Raze the Bar
Gaslight
Naked in New York City
Turn
Bis
Flowers in the Window
…Baby One More Time (Britney Spears cover)
My Eyes
Selfish Jean
Why Does It Always Rain on Me?
Texto: Guilherme Góes
Fotos: Gustavo Diakov (@xchicanox)
Agradecimento especial: Maria Correia