No passado dia 18 de Abril, o Porto recebeu a visita de uma das mais fascinantes vozes da actual música brasileira – a da cantora, compositora e multi-instrumentista Maria Beraldo.
O local escolhido para a apresentação foi o Maus Hábitos, que encheu para testemunhar a força da música tão criativa quanto interventiva da autora de Cavala, álbum com o qual se deu a conhecer com um impacto notável.
Se há algo que se pode dizer acerca de Maria Beraldo, é que é uma artista do nosso tempo: assumidamente lésbica, usa o universo queer onde se situa para se expressar politicamente-segundo ela, é preciso falar abertamente destes temas para ajudar quem esteja na mesma situação (mesmo para ela, este exercício funciona como um urgente grito de libertação) e combater as ideologias retrógradas que afectam o Brasil no actual regime de Jair Bolsonaro – criando assim uma plataforma onde o pessoal e o político se misturam para formar um só meio de expressão artística.
Não é a única a fazê-lo – veja-se, por exemplo, o caso de Linn da Quebrada – mas tal é inevitável; com a turbulência política e social que assombra o país, agora sob a liderança de uma figura conservadora acusada, entre outras coisas, de proferir comentários homofóbicos, a luta revela-se necessária e será intensamente travada, custe o que custar; afinal de contas, a arte é – e sempre será – uma poderosa arma na batalha contra a censura e a discriminação.
Todavia, há mais – muito mais – em Maria Beraldopara além de uma incansável activista: há também o seu lado de compositora versátil, que combina as influências da música brasileira que cresceu a ouvir com a pop, a electrónica e o noise, e ainda a faceta de admirável e apaixonada performer que tivemos o prazer de descobrir esta noite.
Sozinha em palco, não necessitou de mais ninguém para fazer do Maus Hábitos um maravilhoso local de felicidade e até de brincadeira (fez questão de elogiar as “fufas” da cidade, por exemplo), numa celebração que, apesar de tudo, cobriu-se, de certa forma, de alguma melancolia, no modo como contou com breves mas sensíveis referências à decadência moral que caracteriza este estranho e assustador planeta que habitamos.
O mundo não está bem, e Maria Beraldo, não deixando de o admitir, faz o que pode para que a sua música seja uma fonte de luz a contracenar com esse desolador cenário de escuridão; consegue-o, pelo menos enquanto as canções que interpreta aquecem o coração de quem nelas se perde.
Não foi à toa que usamos a palavra performer para descrever quem Maria Beraldo é em palco: adoptando uma pose tão confiante quanto provocadora (nos olhares que lança ou no modo como, por vezes, esfregava a guitarra no corpo) e ostentando um visual algo extravagante, sentimos nela uma consciente teatralização, o que não significa que não seja genuína – sabemos que o é – apenas que a sua actuação possui uma elaborada componente performativa, quase como uma reacção artística aos anos que passou a esconder a sua orientação sexual, a tentar integrar-se num mundo (o da heterosexualidade) onde sabia que não pertencia, mas onde achava que devia pertencer.
Hoje, Maria Beraldo não só aceita quem é, como expressa orgulhosamente essa identidade, não receando as consequências dos seus actos; hoje, Maria Beraldo, no rescaldo de um longo processo de auto-descoberta, espalha a magia da sua personalidade magnética – e que figura carismática é – sempre que sobe a um palco; nesta noite, enquanto nos oferecia composições belas como “Maria”, “Tenso” ou “Gatas Sapatas”, encantou quem nela viu um símbolo de perseverança, uma fonte de inspiração para escapar às limitações impostas pela sociedade, uma voz que nos motiva a sermos quem queremos e quem devemos ser.
Numa impressionante e memorável estreia no Porto (a data fazia parte de uma mini-digressão nacional que viu a artista visitar também o Tremor, nos Açores, assim como Lisboa, Barcelos e Aveiro), que só pecou pela curta duração (só tem um disco, pouco mais podia fazer), Maria Beraldo mostrou o quão especial realmente é, uma autêntica estrela que, esperamos nós, continuará a brilhar.
Falta muito para o regresso? É que já temos saudades!
Antes, houve outra mulher a subir ao palco do Maus Hábitos: o seu nome é Carol, brasileira actualmente a viver no Porto, que proporcionou um serão deveras agradável ao som de delicados acordes de guitarra e uma voz doce, conquistando quem se encontrava na sala, por esta altura já bem composta, com o registo honesto e descontraído com que comunicava.
Ora falando das suas músicas, ora de si própria, a jovem Carol apresentou-se como um livro aberto, sendo que vê-la foi como estar ao pé dela, a escutar atentamente as histórias que tinha para contar e a descobrir cada traço da sua personalidade, numa íntima viagem pelo universo que cria para si própria e que amavelmente partilhou connosco.
Terminou com duas homenagens à música do país que a viu nascer – “Me Deixa Em Paz” de Milton Nascimento e “Maria da Vila Matilde”, poderoso desabafo e, simultaneamente, emotiva declaração feminista da autoria de Elza Soares que, numa noite dedicada à arte feita por mulheres, encaixou na perfeição, soando não como uma mera canção, mas como um hino de extrema importância.
Um aquecimento perfeito para o que se seguiu.
Texto por Jorge Alves
Foto: David Madeira
Ouça ‘Cavala’ de Maria Beraldo: