Marcia Saravia: “O Chile é um país onde o capitalismo mostra sua face da barbárie”

Na décima quinta edição do La Migra nós recebemos a mestre em literatura Latino-americana e doutoranda em linguística, especificamente em análise do Discurso Político, Marcia de Mello Saravia.

Brasileira radica no Chile desde 2001, ela dividiu conosco o período de transição entre a ditadura chilena e a democracia, quando ainda era possível notar os resquícios do autoritarismo em aparelhos ideológicos de comunicação. Na altura, o acesso à saúde e à educação era ainda mais restrito do que na atualidade.

Durante a conversa, Marcia relatou que o povo chileno perdeu as esperanças nos sindicatos, nos partidos de esquerda e na política institucional de um modo geral, o que alimentou uma revolta social coletiva resultando nos gigantescos protestos de 2019, que levaram o país a estabelecer uma nova assembleia constituinte.

Ela avalia a escolha dos constituintes por parte da população como um fato inédito, ressaltando a simbologia da equidade de gênero e da representatividade do povo Mapuche como participantes do processo e torce para que eles tenham maior autonomia, sendo algo semelhante ao ocorrido na instituição de um país plurinacional como no caso da Bolívia.

Saravia aponta ainda para um recorrente equívoco de interpretação que há em relação à eleição da comunista Irací Hassler, que, na realidade, não se elegeu para governar a capital do país por inteiro, mas sim apenas sua principal subprefeitura.

“Hoje seria impossível um comunista ser eleito por toda a cidade. A participação eleitoral teve menos de 50%, foi só 48%. E os bairros mais ricos foram os que tiveram mais participação eleitoral”, explicou.

Na avaliação da doutoranda, foi um erro por parte das autoridades locais terem realizado eleições para governadores e prefeitos no mesmo dia das eleições para os constituintes que farão a nova carta magna, pois, segundo ela, isso pode dificultar o processo no consenso para a elaboração constitucional.





Alguns grupos importantes foram deixados de fora do processo por não estarem reconhecidos oficialmente em nenhum partido, o que levou a formação dos chamados ‘independentes’. Tais independentes são constituídos por grupos extremamente heterogêneos (englobando setores de esquerda, centro, e direita), inclusive artistas famosos, celebridades e personalidade do gênero, com este último tendo conquistado uma votação expressiva para compor a assembleia constituinte. Agora, Marcia espera que os independentes acabem por representar o clamor popular que os elegeram, e não efetuem um “acordão” com os setores mais conservadores da situação.

“O Chile é um país onde temos que pagar para usar o banheiro público, onde o capitalismo mostra sua face da barbárie”, pontuou.

Saravia também avalia que a direita saiu bastante isolada do processo por não ter atingido um terço dos votos totais, o que a forçará a dialogar com os independentes e com a própria esquerda. Por outro lado, infelizmente, o grupo sindical responsável por atos (desde 2010) contra o sistema privado de previdência, também não conseguiu votação suficiente para compor a mesa constituinte, mas Marcia vê esperança ao analisar que tal grupo, muito provavelmente, estabelecerá articulações com a esquerda constituinte.

Na opinião da entrevistada, as pautas da constituinte variam desde a reorganização da estrutura do Estado (como a criação de concursos públicos, estabilidade dos servidores, leis trabalhistas, previdência pública e solidária), até reivindicações feministas e de demais minorias.

A linguista aponta ainda para a brutal diminuição dos eleitores que compareceram nas urnas neste mês (maio de 2021) em relação ao mês novembro do ano passado. Ela enxerga a Servel (Servicio Electoral de Chile) como um dos responsáveis pelo fato, pois não tiveram muita ênfase em organizar as eleições nos bairros mais pobres e no norte do país. Entretanto, ela também não descarta a possibilidade de uma “má vontade política” proposital para a organização, já que a tendência de crescimento do voto de esquerda era muito nítida.

Segundo Marcia, outro fator que poderia ter enfraquecido o engajamento popular para as eleições da constituinte foi o chamado ‘carnaval midiático’ em torno da realização do processo, com a participação do ultra rejeitado presidente Sebastián Piñera, causando desconfiança por parte das massas populares.

Mesmo com o avanço democrático do estabelecimento de uma nova assembleia constituinte, ela alerta que a repressão e prisões arbitrárias e violações recorrentes dos Direitos Humanos (como transferência ilegal de presos, obstrução do acesso a advogados, etc.) continuam a ocorrer em todo o país.

Em relação ao Brasil, Saravia lamenta a situação de miséria do povo, de volta à pobreza e à fome generalizada e de falta de auxílio público digno durante a pandemia, principalmente nas periferias das grandes cidades.

Assista o #LaMigra completo com a participação da Marcia de Mello Saravia, diretamente de Santiago, Chile:


Texto por Felipe Cunha
Revisão por Stefani Costa

Marcia Saravia: “O Chile é um país onde o capitalismo mostra sua face da barbárie”

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