Web Summit 2024: um espelho da crise habitacional e da dependência turística em Portugal

A Web Summit se apresenta como ‘a maior feira de tecnologia da Europa’, mas por trás de sua fachada de inovação e progresso, encobre-se uma realidade crítica que afeta a capital portuguesa e seus habitantes. Enquanto o CEO do evento, Paddy Cosgrave, aliava-se no palco com neoliberais portugueses, a cidade seguia com suas múltiplas crises habitacionais e de estrutura, através de uma economia em frangalhos que depende de forma majoritária do atual turismo descomunal.

A senha para ter o emprego de volta foi parar de falar sobre o genocídio em Gaza. Cosgrave retornou ao posto de CEO da Web Summit após ser substituído por Katherine Maher na última edição. O afastamento do irlandês e fundador do evento aconteceu em outubro do ano passado, após uma publicação feita no X sobre os ataques de Israel na Faixa de Gaza. “Crimes de guerra são crimes de guerra, mesmo quando cometidos por aliados, e devem ser chamados pelo que são.” Depois das afirmações, várias empresas de tecnologia, incluindo Google, Amazon, Meta, Stripe e Siemens, desistiram de participar da conferência. Durante a abertura da ‘maior feira de tecnologia da Europa’, Cosgrave voltou a dividir o palco com o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Moedas, e recebeu também o primeiro-ministro, Luis Montenegro. “Reservei um tempo para me reconectar com velhos amigos da Web Summit e ouvi o que eles tinham a dizer”, afirmou em abril ao reassumir o cargo.

Lisboa, com mais de 720 mil casas vazias ou abandonadas, vive um paradoxo: a escassez de moradia digna para os seus cidadãos e cidadãs contrasta com a especulação imobiliária que transforma a cidade em um parque para turistas e investidores. A gentrificação, exacerbada pela presença de nômades digitais e a multiplicação de alojamentos locais, empurra trabalhadores e famílias inteiras para as margens da sociedade. A realidade é cruel: muitos enfrentam condições precárias, vidas em quartos alugados a preços exorbitantes ou até mesmo em tendas pelas ruas e estações, enquanto o custo de itens básicos nos supermercados continuam a subir vertiginosamente.




A inflação em Portugal não dá sinais de recuo. Entre outubro de 2023 e outubro de 2024 existe uma diferença de 9,96€ no preço do cesta básica. E os aumentos nos serviços essenciais, como eletricidade e transporte público, tornam a vida ainda mais insustentável para a população. No mais, a falta de políticas públicas efetivas para enfrentar a crise habitacional reflete um descaso que se estende a uma parte significativa da população, incluindo imigrantes que, muitas vezes, ficam com documentação irregular devido à lentidão da AIMA (Agência para a Integração, Migrações e Asilo) na regularização de seu status.

Já a dependência do turismo como motor econômico de Portugal torna-se evidente na forma como os recursos públicos são atribuídos. A transferência de 4 milhões de euros da Câmara Municipal de Lisboa presidida por Carlos Moedas (PSD), para a Web Summit poderia ter sido investida em melhorias no transporte público ou na habitação social. Porém, em vez disso, foi direcionada a um evento que beneficia principalmente investidores internacionais. A feira, que se vende como um espaço de inovação, na verdade, se transforma em uma ‘bancada de negócios’ onde ideias de start-ups são exploradas para gerar mais-valia para poucos, perpetuando um sistema de pilhagem capitalista que ignora cada vez mais as necessidades da população local.

Em suma, a Web Summit em Lisboa não é somente um evento de tecnologia; é um reflexo das desigualdades e desafios que essa terra enfrenta no momento. Enquanto CEO’s e líderes políticos celebram a inovação e o investimento, a realidade para a maioria de nós é a luta diária por dignidade e sobrevivência. Portugal e a sua capital precisam urgentemente de uma reavaliação de suas prioridades, colocando as necessidades dos seus cidadãos e das suas cidadãs em primeiro lugar ao invés de se verterem à lógica do lucro a qualquer custo. A ‘Miséria S.A.’ acaba de chegar.


Texto por Stefani Costa e Fernando Araújo.

Imagem destacada por Horacio Villalobos (Corbis/Getty Images).

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