“Esse filme é um presente para a cena que criou a gente”, afirmou Marcelo Fonseca antes da primeira exibição de Hardcore 90, documentário apresentado na Sala Olido durante o festival In-Edit — mostra dedicada exclusivamente a filmes, documentários, palestras e debates sobre música.
Idealizado por Marcelo Fonseca e George Ferreira, Hardcore 90 levou mais de 15 anos para ser concluído. Durante esse período, os próprios diretores chegaram a duvidar se o material algum dia veria a luz do dia. O longo processo enfrentou diversos obstáculos: questões pessoais, a pandemia de Covid-19 e, principalmente, a complexidade do projeto, que envolveu mais de 100 entrevistas com personagens ativos da cena hardcore.

Marcelo Fonseca e George Ferreira durante exibição do documentário no Cine Olido, região central de São Paulo
A obra traça um panorama rico da cena hardcore paulistana desde sua formação, evidenciando sua consolidação ao longo da década de 1990. Nos últimos anos dos anos 80, o movimento punk atravessava um momento conturbado, marcado por episódios de violência entre gangues durante os shows. Foi nesse contexto que o hardcore emergiu como uma proposta mais politizada, coesa e socialmente engajada. Seguindo os princípios do Do It Yourself (DIY), bandas anarcopunks, straight edge e melódicas buscaram revitalizar o movimento. Além de maior conscientização política, esse novo momento trouxe também um avanço técnico nas produções e gravações das bandas.
Além de entrevistas com figuras conhecidas da cena, o documentário apresenta um vasto acervo composto por flyers, recortes de jornais e revistas e zines da época, revelando como a cena funcionava na prática. O envolvimento com o hardcore ia além da estética ou do som — era também uma forma de construção política, cultural e social. No entanto, a obra não deixa de evidenciar que, para muitos jovens, aquele ambiente apenas servia como espaço de pertencimento e, infelizmente, palco para conflitos e brigas.
Um dos méritos do filme é abordar com profundidade as diferentes “tribos” que coexistiam no underground. Os anarcopunks, por exemplo, buscavam romper com o punk tradicional, adotando uma postura mais engajada. Já os straight edge pregavam um estilo de vida livre de drogas e álcool, além de defenderem o vegetarianismo/veganismo — embora, paradoxalmente, tivessem entre seus membros posturas extremistas que protagonizaram episódios de violência. Por fim, os chamados “melódicos” trouxeram mais técnica musical e variedade lírica ao hardcore, tornando-o mais acessível ao público em geral, mas acabaram sendo marginalizados dentro da própria cena por não manterem um discurso político tão explícito.
É interessante observar como a cena hardcore foi se profissionalizando ao longo do tempo, refletindo não apenas sua própria evolução, mas também transformações mais amplas da sociedade. Hoje, um fã do estilo pode ouvir discos por meio de plataformas de streaming, assistir a shows completos no YouTube ou Vimeo, acompanhar notícias, entrevistas e resenhas em sites especializados ou até mesmo pelas redes sociais, como Instagram e TikTok — tudo de forma praticamente instantânea.
No passado, porém, o acesso à cena era limitado e rudimentar. Sem internet ou mídias digitais, acompanhar o movimento exigia presença ativa: era preciso frequentar os shows e lojas de disco, manter contato com outros membros da cena e buscar informações em fanzines artesanais. Tudo era manual, demorado e restrito a quem estivesse diretamente envolvido. Essa diferença evidencia o impacto profundo da internet e das novas tecnologias não apenas na disseminação da cultura pop, mas também na democratização do acesso à informação e ao conhecimento. Como bem resumiu um dos entrevistados no documentário: “Se a internet estivesse presente naquele momento, tudo seria diferente.”
Um ponto frágil de Hardcore 90, no entanto, é o fato de que boa parte das entrevistas foi realizada ainda no início da década de 2010. Dada a longa janela de produção — 16 anos — , seria natural esperar atualizações ou novos depoimentos. Curiosamente, isso não acontece, o que pode transmitir uma sensação de desatualização em alguns trechos do filme.
O hardcore segue vivo e pulsante em 2025: há shows lotados, bandas lançando novos trabalhos e uma imprensa especializada que produz conteúdo quase ininterruptamente. Mas, para quem deseja compreender como tudo começou — e como era viver intensamente essa cultura no passado — , Hardcore 90 é um documentário indispensável.