Na trilha de Macunaíma: a cultura para e com o povo

“(…) água mole

pedra dura

tanto bate que não restará nem pensamento (…)”

Gilberto Gil


Feche os olhos e imagine cenas que remetam à ideia de cultura. O que você vê? O que você pensa?

Alguns anos atrás, na quebrada do Jardim Santo André, nem sonhávamos com a potência da cultura devido ao formato elitista imposto nesse campo. Era comum ouvir que cultura é coisa de gente rica e aos pobres caberia somente seguir a ‘normatização’ criada e reproduzida pela lógica do mercado.

A cultura tinha um lugar, geralmente centralizado, pensada como a garantia de acesso a shows, teatro, música erudita, além da apreciação de quadros de artistas renomados e inacessíveis, sendo esses últimos, sempre confundidos como os únicos agentes culturais. Obviamente que arte é cultura, mas não só.

É um equívoco restringir o campo da cultura somente às manifestações artísticas. Pensar assim é empobrecer a cultura. Felizmente, temos figuras icônicas no Brasil que nos ajudam a sair da ignorância. Gilberto Gil é uma delas.

Enquanto Ministro da Cultura, a frase que acompanhou sua gestão foi: “A criatividade do povo brasileiro é nosso maior patrimônio”. Gil defendia que, em tempos de globalização, em que tudo caminha para a uniformização, é preciso atentar-se, dar espaço para o diverso, para aquilo que não se uniformiza. Afinal, a imaginação do ser humano é permanente e está em constante movimento.


Gilberto Gil por Marcos Barreto

        
Em 2009, no Jardim Santo André, tivemos a oportunidade de acessar o programa Cultura Viva, do Governo Federal. Escrevemos um projeto e participamos de um edital que daria início a uma viagem sem volta no campo da cultura. Essa trilha, sendo uma da mais importantes das nossas vidas, permitiu a conquista de uma visão mais abrangente de que a cultura é tudo aquilo que o povo produz. Por isso, é correto dizer que foi um projeto formativo.

Enquanto dele participávamos, nossa visão sobre diversos aspectos da vida social, também foi transformada.

Passando o tempo, tivemos a oportunidade de estudar, ler, conhecer e desenvolver práticas que nos levaram a ampliar nosso entendimento sobre o que é cultura e qual deveria ser o papel do Estado nesse campo.

Passaram-se mais de dez anos desde a primeira participação. De lá para cá, a relação no meio social também mudou, já que passamos a compreender melhor a importância da atuação efetiva nos Conselhos da cidade.

Começamos a fazer parte do Conselho de Cultura, e, inúmeros debates foram travados em defesa de um conceito mais abrangente que inclua toda a cidade e todas as pessoas, não somente a elite e/ou o centro.

A busca pela genuína representatividade dentro do poder institucional por meio dos Conselhos tornou-se mais do que uma forma de ocupação, é algo de extrema importância, uma necessidade.

Os Conselhos são mecanismos de controle externo, muitas vezes desconhecidos pela maioria da população. É um campo de lutas fértil onde a comunidade pode, efetivamente, fiscalizar, delegar, propor, sugerir e participar junto ao poder público, defendendo os seus interesses.

Portanto, os Conselhos são necessários para a diminuição das desigualdades sociais e podem atuar de forma decisiva na proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos, aumentando a proximidade entre o Estado e o povo, proporcionando um aumento na efetividade das políticas sociais e culturais, fortalecendo a cidadania.

Macunaíma por Caribé


Interessante como as políticas públicas inclusivas levam um tempo para acontecer. Hoje, atingimos a maturidade no debate da cultura, que só foi possível por meio da participação ativa no Conselho.

Ao fazer parte deste espaço tão importante, percebemos que a discussão tem origem no direito constitucional em seu artigo de Lei, número 215: “o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

No último edital do Fundo de Cultura, em curso na cidade de Santo André, metade dos recursos devem destinar-se às iniciativas culturais da periferia, e, a outra metade, às iniciativas culturais do centro.

Para que o edital tenha sucesso, é preciso rememorar as sábias palavras do sociólogo José Marcio Barros: A cultura refere-se tanto ao modo de vida total de um povo – isso inclui tudo aquilo que é socialmente aprendido e transmitido, quanto ao processo de cultivo e desenvolvimento mental, subjetivo e espiritual, através de práticas e subjetividades específicas, comumente chamadas de manifestações artísticas”.

O Fundo de Cultura, como já mencionado, está com inscrições abertas até o dia 15 de janeiro de 2020. Precisamos valorizá-lo!

Apesar do contexto nacional não estar favorável às políticas culturais, em Santo André tem sido diferente. Percebe-se vontade política em se construir iniciativas ampliadas e democráticas.

Há pouco tempo, os fundos não eram geridos de forma aberta. Hoje, por exemplo, está se consolidando a política de editais, respeitando a cultura em seus diversos aspectos, oportunizando a participação da criatividade do povo, como já defendia Gilberto Gil há uma década. Com um edital simples, o griô têm a oportunidade de participar.

Tela: O Contador de história, de Eduardo Lima



Para complementar, explico a importância deste agente cultural: “griô ou mestre(a) é todo(a) cidadão(ã) que se reconheça e seja reconhecido(a) pela sua própria comunidade como herdeiro(a) dos saberes e fazeres da tradição oral e que, por meio do poder da palavra, da oralidade, da corporeidade e da vivência, dialoga, aprende, ensina e torna-se a memória viva e afetiva da tradição oral, transmitindo saberes e fazeres de geração em geração, garantindo a ancestralidade e identidade do seu povo. A tradição oral tem sua própria pedagogia, política e economia de criação, produção cultural e transmissão de geração em geração”..

Atualmente, a política cultural vigente na cidade de Santo André oportuniza e fomenta desdobramentos das ações griôs. E isso tem nome: democratização da cultura. Podemos dizer que a cidade é um oásis nas políticas culturais. No entanto, é preciso participar, opinar e convidar pessoas. Porque mais importante do que consolidar ações, é fortalecer a democracia.

Para isso, é primordial incidir, manifestar nossas vontades, fazer valer a nossa voz e a nossa vez.

É preciso aproveitar esse espaço, lutando e estabelecendo novas políticas. Ocupando outros conselhos, juntando as pessoas e fazendo coro. Pois, temos que acreditar que a cultura é o campo das liberdades e da melhoria da vida coletiva.



Este texto foi produzido de forma conjunta e compartilhada por:


Neri Silvestre, macunaímico

Isabel Rodrigues, na trilha

Gil Oliveira, rítmico

Na trilha de Macunaíma: a cultura para e com o povo

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