Rafael Corrêa e o papel do cartunista contemporâneo

Desenhar muitas vezes é visto como uma brincadeira. Mas já pensou que isso pode se tornar a sua profissão um dia? É preciso estar atento e forte para não ser desviado do próprio caminho!

O Rafael Corrêa desenha desde muito pequeno. Hoje, aos 44 anos, continua deixando a sua ‘criança interna’ criar livremente. Ainda bem! Ele é de Porto Alegre, o que de certa forma me deu a sensação de ter saído de São Paulo para conversar com um amigo com quem tenho muitas afinidades.

Em 2018, quando a onda de conservadorismo parecia nos derrubar como um tsunami, uma ilustração foi bastante compartilhada (foto em destaque na matéria). A imagem mostra um casal conversando. O homem pergunta: “O que faremos agora?”. Em resposta, a mulher diz: “Poesia, esses canalhas não suportam poesia”.

Foi assim que conheci o trabalho do Rafael Corrêa.


Me encanta a forma como artistas, fotógrafos, compositores, todos aqueles que lidam com arte, ainda conseguem manter um olhar doce sobre as coisas da vida, mesmo as mais duras.

Somos protagonistas de nossas histórias, e, dificilmente, escaparemos dessa vida sem ter algo triste, algo amargo no roteiro. Nem só de alegrias vivemos.

Neste balanço que só existe para quem vive, Rafael acabou sendo diagnosticado, em 2010, com escleroese múltipla. O que poderia ter dado um fim em sua carreira como cartunista, acabou entregando para ele mais um personagem. Agora, com traços diferentes dos que ele costumava usar, as mãos precisaram e encontraram uma nova forma de desenhar. Rafael se tornou ele mesmo, mas em folhas de papel.

Ele conta sobre a vivência dele com a doença em Memórias de Um Esclerosado.

As tirinhas nos fazem entender como é estar na pele dele. Você vai encontrar momentos cômicos, melancólicos e nostálgicos. Existe uma ilustração na história em que ele tenta alcançar a superfície da água onde está imerso. É o tipo de sensação que todos nós já tivemos ou teremos um dia. Nos momentos de nostalgia ele lembra de quando era criança e corria, pulava muros, subia em árvores. A mente viaja no tempo, quebra qualquer limite que o corpo tenha imposto, e isso vale para o Rafael e para você também.


Conversei com o Rafael Corrêa, a quem decidi chamar de Rafa. Este é o mau da arte, que acaba concedendo automaticamente a desconhecidos como eu, um grau de intimidade com o artista. Aqui está um pouquinho sobre a trajetória, os pensamentos como cartunista e a pessoa de carne e osso.



Dani|Hedflow: Rafa, você desenha desde criança e fez seu primeiro gibi aos 10 anos. Geralmente, aptidões artísticas são vistas como hobbies e não como uma oportunidade de carreira profissional. No seu caso, você teve bastante apoio da sua família. Você acredita que o apoio deles foi essencial para se tornasse um cartunista?

Rafael Corrêa Cartum: Sem dúvida, ser artista no Brasil já é difícil, se não tiver apoio da família e dos amigos a situação complica ainda mais. Reconheço que sou um privilegiado por ter sido apoiado em todas as etapas da minha carreira.

Dani|Hedflow: Um dos grandes desafios do artista independente é conseguir publicar o seu trabalho e ganhar espaço no meio. Você enxerga alguma forma de melhorar este cenário?

Rafael Corrêa Cartum: O mercado de impressos está cada vez mais restrito, e as editoras raramente apostam em autores independentes. Acho que a solução é a autopublicação. Precisamos ser, além de autores, editores e vendedores, e quem não conseguir buscar seu espaço nas redes sociais dificilmente vai ter sucesso.

Dani|Hedflow: Em um artigo feito por Gabriela Boesel para o site coletiva.net, é possível descobrir muito sobre a sua trajetória. Em 2010, você foi diagnosticado com esclerose múltipla, o que afetou especialmente o lado esquerdo do seu corpo, certo? Sendo canhoto, imagino que tenha sido um baque, mas você tem lidado com muita sabedoria. Memórias De Um Esclerosado é prova disso. Você pode contar como foi o processo de reaprender a desenhar e de transformar a dor em arte?

Rafael Corrêa Cartum: Enfrentar essa doença tem sido o maior desafio da minha vida. Mas em nenhum momento pensei em desistir de desenhar e contar minhas histórias, inclusive a arte tem sido uma grande aliada para aguentar o tranco. Em 2016, começou a ficar muito difícil de trabalhar com a canhota, e, aos poucos, fui treinando a mão direita, que foi menos afetada pela esclerose múltipla. Em seis meses já estava conseguindo desenhar com a direita e hoje gosto mais do meu desenho do que antes. A arte está na cabeça.

Dani|Hedflow: Até este momento, você recebeu mais de 40 prêmios como cartunista. O que é uma grande conquista. Você se lembra de algum momento, desde os seus 10 anos de idade, que tenha te marcado de forma muito positiva por conta dos desenhos?

Rafael Corrêa Cartum: Já foram 50 prêmios e é sempre uma satisfação ser um dos vencedores. Alguns desses concursos premiam com viagens e a que mais me marcou foi para Istambul, que é uma cidade espetacular. Na Turquia eles levam o cartum muito a sério e na cerimônia de premiação tinha ministro da cultura, embaixadores, celebridades do país e até tapete vermelho. Me senti um astro de cinema!

Dani|Hedflow: O cartum da poesia você fez quando Lula foi preso, reforçando sua declaração. Sim, foi um dos símbolos de resistência desse nosso período e acredito que ainda seja. Na sua opinião, qual é a importância do cartunista em tempos de repressão?

Rafael Corrêa Cartum: Eu me inspiro muito no pessoal do Pasquim, que foi bem combativo durante a ditadura militar, registrando aquele momento histórico. O cartunista não serve só para fazer rir, ele também tem que meter o dedo na ferida, trazer um olhar crítico sobre o nosso tempo. O cartunista precisa ser um cronista.


Dani|Hedflow: Você sempre faz algum cartum com crítica social, isso mostra um posicionamento. Você sente que este posicionamento limita algumas mídias?

Rafael Corrêa Cartum: Ô se limita, principalmente nas grandes empresas de comunicação que são servis ao anunciante e ao capital. O Santiago, um grande mestre meu, foi demitido de um jornal por fazer uma charge sobre o lucro dos bancos. Esse é o nível.

Dani|Hedflow: Rafa, você diz que a literatura é muito importante, e sendo um contador de histórias isso é mais importante ainda. Para escrever bem, é preciso ler muito. Quais leituras você indicaria?

Rafael Corrêa Cartum: Gosto muito do Jack London, acho que é o meu autor preferido no momento. Do Eduardo Galeano dá para ler tudo, assim como o Kundera. Esses dias eu li o primeiro livro do George Orwell e achei fantástico. Na pior em Paris e Londres. E pra não citar apenas homens, indico a Patti Smith e seu Só Garotos.

Dani|Hedflow: Entre cartunistas independentes, você conseguiria nos indicar alguns nomes para conhecermos os trabalhos dessa galera?

Rafael Corrêa Cartum: Estamos passando por uma época muito boa em termos de qualidade e quantidade na produção gráfica no Brasil. Vou citar alguns nomes, mas tem muito mais: Caio Gomez, Fabiane Langona, Love Love 6, Góes, Sica, Edu Oliveira, Helô D’ângelo, Felipe Portugal, Denny Chang, Laffa, Bernardo França, Batatinha Fantasma, Gerlach, Leandro Assis, Aline Daka, etc, etc…

Dani|Hedflow: Você disse que toda criança nasce artista, isso se deve a imaginação. Como fã de Beatles, você deve ter em mente o que Yoko ensinou para Lennon: ter uma imaginação rica e incansável. Como manter a imaginação viva e doce em tempos ásperos?

Rafael Corrêa Cartum: Eu acho que para manter a imaginação viva e também para não embrutecer e enlouquecer a solução é continuarmos consumindo arte e ficarmos próximos das pessoas que amamos.

Dani|Hedflow: E aproveitando o gancho de Beatles, se você pudesse escolher apenas um álbum do fab four, qual seria?

Rafael Corrêa Cartum: Bá, difícil, gosto de todos. Meus preferidos são: Rubber Soul, Abbey Road, Let it Be… mas se é para escolher só um eu fico com o Álbum Branco, por ser duplo e ter mais músicas, ehehe.


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Rafael Corrêa e o papel do cartunista contemporâneo

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- Nascida nos anos 90 e apaixonada por música e escrita, é fã de Beatles e Rolling Stones. Acredita que escrever é como soltar pássaros de gaiolas. Instagram: @eladaninelo @daniescreve / Twitter: @danislelas