Mateus Aleluia: “Se não houvesse a música, o verbo não seria dito”


Ao chegar no Portugália, um restaurante bem tradicional de Lisboa, fundando em 1925, na esquina da Fábrica de Cerveja da Avenida Almirante Reis, encontrei uma entidade chamada Mateus Aleluia. Falando baixinho do alto dos seus 78 anos, o brasileiro mais angolano que já conheci dividiu comigo alguns momentos de sua trajetória como compositor, cantor e pesquisador da cultura que afro-barroca, e que conecta a Bahia com Angola. Além da aula sobre Candomblé, fé e socialismo, Mateus Aleluia revelou, ao risos, que (Gilberto) Gil é o seu guru, assim como Caetano (Veloso), e que ambos sabem disso.


Quarenta anos depois em Portugal. Como foi esse reencontro com esta terra irmã?

Olha, quando eu estive aqui era escudo (moeda anterior), agora é euro (risos). Portugal muda, mas conserva sempre… No caso, Lisboa, aquele ar que é próprio dela. Portugal é como a gente: nós nascemos, vamos crescendo, vem a puberdade, adolescência, início de vida adulta, e vamos seguindo pela vida. Lisboa, pra mim… Ela mantém essa característica desde quando eu a conheci. Estive aqui em 1984. De lá pra cá, muitas coisas mudaram. A cidade se tornou muito mais populosa, entendeu? As ruas aqui têm prédios que naquela época não haviam. Note, por exemplo, a presença do tempo em querer mudar as coisas. Mas, não é o tempo que muda as coisas. As pessoas é que tentam impingir na realidade da natureza uma dose da sua característica. Então, põem aquilo que já encontraram e tentam dar uma mudança. E uma das coisas que eu senti muito, é que Portugal não se deixou mudar muito. Lisboa não se deixou mudar muito. Apesar de tudo que foi feito de novidade, ela continua Lisboa… Velha cidade, cheia de encantos e beleza.

Eu li uma entrevista sua onde você diz que, quando estava em Portugal e andava pelas ruas de Lisboa, era possível sentir-se muitas vezes no Pelourinho, em Minas Gerais… Qual é a importância dessa ligação entre Brasil e Portugal e o peso disso na sua música?

Tudo se reproduz desde Portugal. Eu vejo Portugal assim como eu vejo o Brasil e assim como eu vejo Angola… Eu vivi em Angola por 20 anos. É como se fosse um acordo do universo com a natureza para que esse triângulo do atlântico realmente funcionasse. Vejo nisso uma confraria do tempo. Esse afro-barroquismo, que é uma cultura que nos liga, mesmo. Esse ‘afro’ trazido pelos africanos e esse barroco levado tanto para Angola como para o Brasil, pelos europeus, através de Portugal, né? E no Brasil isso se somou a cultura da terra, que é a cultura do Índio, o que é uma das coisas… É como se eu estivesse em uma das ruas de Belo Horizonte, ou de Ouro Preto. Até mais: Ouro Preto, Diamantina… Aquela Minas Gerais de 400 anos atrás, de Aleijadinho… Ou como se eu estivesse na minha cidade, no recôncavo da Bahia, em Cachoeira. Aqueles casarios todos… Aquilo, meus Deus… Pelo amor de Deus… Do outro lado, até São Félix, no Paraguaçu, é como se fosse o Tejo, e, do outro lado, o Sado. Isso é interessante.

Quando nós estivemos aqui com os Tincoãs… Olha, nós temos até uma música chamada ‘Cachoeira’, como se fosse um papo. “Olha, eu vejo Lisboa, a Bahia, nossa terra. Vossa terra, nossa terra, tem garotas que sabem sambar.” (cantarolou baixinho). Então a gente começa a descrever as coisas que aqui tem, e, que lá também tem, levada por aqui. E outras coisas que aqui têm, que foram trazidas de África… E, talvez, do Brasil também, através de África, né? Teve uma época da nossa história, por exemplo, que foram os portugueses que deram uma certa autonomia a Angola. Naquele período Luanda ainda pertencia ao Congo. Mas, foram os portugueses (que estavam no Brasil) que foram pra lá (Angola) darem-lhe essa autonomia. Então, essa ‘triangulação’ é uma coisa real.

Se você pegar e não ver que até mesmo para nós, penso, o que nos liga mesmo é a nossa cultura. Seja lá qual for a cultura, ela advém do culto. Todo povo que tem um culto tem uma cultura, que é definida por esse culto. É o culto que dá uma certa disciplina de hábitos… ‘Tem que fazer isso, tem que fazer aquilo’… E depois você transforma isso numa cultura que passa a ser, realmente, o hábito do dia a dia das pessoas. Porque o culto pra nós, pra continuar sendo culto, tem que haver o ‘despoletar’ de um fenómeno qualquer… Isso aí transcende, né? É o ‘religare’. É o seu encontro com algo de imaginário que a gente chama de Deus. Mas, esse encontro imaginário que a gente chama de Deus, seja numa igreja, num templo ou num terreiro de Candomblé, seja onde for, pela disciplina que é exercida ali, depois se transforma. Essa disciplina no seu dia a dia, que passa a ser a sua cultura. Então, na Bahia se nós temos uma cultura toda bem definida, que podemos chamar de cultura afro-barroca, ela é definida pelo catolicismo, que também é um culto, e, pelo Candomblé, que é outro culto. Daí vem essa ligação: Brasil, Portugal, Bahia, Lisboa e Angola… Ela é muito forte em função disso.

Nós temos princípios de formação da nossa personalidade que são muito, muito parecidos. Por exemplo, no Candomblé, a personalidade dos filhos de Ogum é austera, de pessoas próprias, para travarem os embates. Na igreja Católica a personalidade de uma pessoa que é devota de Santo Antônio também possui um perfil austero, sempre assim. Aqueles que são devotos de Iemanjá, no Brasil, por exemplo, são mais bondosos, assim como os seguidores da Virgem Maria, que levam esse mesmo ar de beatitude, né?





A Umbanda, na verdade, é uma mistura das raízes indígenas com a cultura afro, com o Candomblé. Quando você deixa o Brasil e vai para Angola, o que você descobriu ali que te fez não querer retornar, ficando 20 anos por lá?

Olha menina… Não é não querer retornar… É aquela coisa, né? A natureza tem leis, o homem é que tem moral, né?

Nossa moral é que faz a gente tomar decisões que às vezes não eram pra ser tomadas. Nós fomos com a intenção de regressar ao Brasil. Eram apenas 7 dias de viagem. Todos que foram conosco, uma delegação de quase 70 pessoas, voltaram. Somente nós três, do Tincoãs, ficamos, e, desses três, depois de uma semana, um voltou. Aí ficamos em dois. Mas, em função de quê?

Todo o nosso trabalho sempre foi pautado nas raízes africanas, dentro do princípio do catolicismo, da raiz ecumênica Católica, né?  Se você conhece (a cidade) Cachoeira, você entende o porquê da nossa necessidade de fazer o trabalho musical que nós fazemos. Cachoeira é uma cidade sincretizada de forma natural. Antigamente, quando davam 6 horas da tarde, começavam a tocar os Candomblés, mas eles eram perseguidos. Por isso tocava-se à noite. E como aquela (cidade) é um vale, repercutia em todo lugar. Sendo assim, do ponto de vista musical, a pessoa era formada naturalmente pelos toques do rumpilé. Parecia aqueles filmes antigos, sobre a África antiga, mesmo. Você dormia embalado pelo som do rumpilé e ogâ, que são instrumentos (tambores) ritualísticos do Candomblé. Quando davam 6 horas da manhã, o sino da igreja Católica tocava pra gente despertar. Depois, quando começava a missa, às 7 horas, o órgão da igreja, bonito e secular, ‘inundava’ a cidade e entrava até nas casas. Então, você tinha, de forma espontânea, uma formação musical, e, no dia a dia a gente misturava o sincretismo com os índios… Com isso tudo, sabe? Essa é a nossa formação cultural.

Quando chegamos em Angola e vimos tudo aquilo, nós voltamos no tempo. Primeiro, porque vimos uma Bahia de quando, praticamente, nós éramos garotos. Angola manteve os hábitos que na nossa terra já não se mantinham. Aquela forma de falar toda cerimoniosa e tal… Nós tínhamos adquirido (na Bahia) outros hábitos. E aquilo já nos prendeu logo à primeira vista. Fomos fazer o show e esperávamos que ninguém conhecesse as nossas músicas… “O que é Angola para nós? O que é Angola?”.

No nosso primeiro disco, cantamos ‘Deixa a Gira Girá’, que fala: “Meu pai veio da Aruanda, e a nossa mãe é Iansã“. Aruanda é uma ‘currutela’ de Luanda. Quando chegamos ali e cantamos isso, o povo respondeu. Quando cantamos ‘Cordeiro de Nanã’, música que não vem de Angola, mas lá da região dos Iorubás, do Benin (antigo Daomé, sudoeste da Nigéria), o povo respondeu gritando “contato imediato!”. Tivemos que ficar mais tempo pra gente perceber o trabalho que a gente fazia, porque, quando nós chegamos, vimos tudo aquilo: o povo cantando o que era nosso. Mas, sem aquela disciplina ecumênica que nós tínhamos. Para eles era algo natural, do dia a dia, sabe? Não tinha aquela devoção.

Você pegou um período pós Guerra Colonial, né? Um momento onde se tentou construir uma sociedade comunista em Angola. Como você acha que a música, a arte, poderiam trazer essa mudança novamente? Tanto para Angola, como para o Brasil o nosso Brasil atual? Porque a gente vive um momento muito complicado, de intolerância, de perseguição religiosa por parte de um Estado que não quer ser laico, impondo uma religião sobre as outras. Como é pra você cantar sobre as nossas origens afros agora?

Eu nasci dentro desse princípio de intolerância . Essa intolerância nunca deixou de existir na realidade. Quando eu nasci, no Brasil de 1943, o Candomblé era perseguido. Só em 1978, se não me engano, que um governador da Bahia tornou o Candomblé uma religião ‘normal’, sabe? Foi o Roberto Santos (esse governador), se não me engano. Até então, para se poder bater candomblé tinha que pedir licença na Secretaria de Jogos e Costumes. Era uma coisa como o ‘jogo do Bicho’, uma contravenção. Nós éramos considerados contraventores. Quando nós, os Tincoãs, começamos a cantar música de Candomblé, assim, abertamente, e, fazer show, tudo isso… Se fazia muitos artistas lá, mas eles nunca foram, assim, de se mostrarem abertamente. A não ser aquelas pessoas que já pertenciam ao Candomblé e que sofriam tantas perseguições. Aquilo era uma perseguição, às vezes de forma velada, às vezes de forma clara… Da mesma maneira que, hoje em dia no Brasil, estão tentando impor uma religião… Um ‘novo cristianismo’, né? Porque Cristo nunca pregou isso que ‘eles’ dizem, né? Se eles fossem realmente pessoas estudiosas da religião, eles saberiam que Cristo, cujo o nome em aramaico é Yeshua. E se for ler mesmo, do ponto de vista teosófico, o que é isso, se encontrará uma semelhança muito grande com Falebá, que é também, digamos assim, o Cristo. Mas, a gente chama de Exú, o Cristo do Sol… Muito parecido também com Bará, que é o Cristo dos Iorubás, que, por sua vez, também é muito parecido com Lebá, o Cristo do povo Ovimbundu de Angola.

Essa perseguição com a nossa religiosidade, com o nosso princípio de cultura… Porque a gente advoga que a cultura vem do culto. É por isso que na Bahia nós temos toda uma culinária baseada no (azeite) dendê. É a terra da soberania do dendê. Porque o dendê é a base do nosso culto, né? O iaçu, o milho, o acaçá… Sabe? Toda nossa gastronomia é baseada nas comidas dos Santos. Toda essa forma da gente se vestir é baseada nas roupas, nos trajes, nas indumentárias dos nossos Orixás e das nossas Yabás. Toda a nossa fitoterapia vem dos ensinamentos de Agué, Deus das ervas pelo Ossãe (dentro dos ensinos de Ossaim, Deus das ervas do povo Ketu Iorubá), e, dentro dos ensinamentos de Katendê, Deus das ervas do povo Bantu. Toda a nossa cultura e toda a nossa história em ciência se originam do nosso arsenal, do ‘químico’ dos Orixás… Dos Inquices e dos Voduns… É assim que nós vivemos.

Sendo assim, a perseguição vai passar, como já passou. E nós ainda continuamos porque nós vivemos pela fé. Nós temos ‘aquilo’ que ninguém vê. Nem nós mesmos vemos, mas nós acreditamos que ‘o’ temos ou ‘a’ temos. Mesmo que eu não possa ver aquilo em que acredito, eu vivo como se visse… E um dia isso vai se realizar. Aí quando um descendente meu, ou de alguém que tenha essa mesma fé, estiver, daqui há uns 200 anos, usufruindo disso, nós também estaremos… Porque a nossa vida é um ‘eterno continuar’… É um verbo em estado contínuo. É um ciclo, queiramos ou não, acreditemos ou não.

Foto por Paola Alfamor



Além do concerto, vocês também vão lançar o documentário ‘Aleluia, O canto infinito do Tincoã’, da Tenille Bezerra. Em uma entrevista, ela (Tenille) fala que, ao acompanhar o seu dia a dia, ela percebeu o quanto a politização é algo ‘natural’ do Candomblé. Nós vivemos um momento onde tudo está sendo politizado. Como explicar para o jovem de hoje que a política no Candomblé, e na cultura afro, é algo orgânico?

Esse é um dado interessante. Nós temos mais é que pedir aos jovens que nos expliquem. Porque são eles que trazem as novidades. Eu não vou ensinar nada a você, uma menina que deve ter, no máximo, uns 29 anos? |Quase 33|. Eu não tenho nada para te ensinar. Eu tenho mais é que aprender contigo, entendeu? A única coisa que eu posso te ensinar é alguma prudência, pois você tem a impetuosidade de quem traz algo novo. E eu tenho o quê? A parcimônia, a paciência e a prudência de quem viveu uma etapa da vida, e, que, agora, mede os passos para não derrapar, não pisar em casca de banana.

Então se a gente combinar, você com os seus quase 33 e eu com os meus 78, é bom que você tenha impetuosidade e eu a prudência. E aí, com a sua impetuosidade, você não vai cair no abismo, pois vai me ouvir. E eu, com a minha prudência, vou ficar parado num lugar que, você, com a sua impetuosidade, não me deixará parado, estagnado… Entende?

No Candomblé é isso que acontece durante o nosso ensinamento.

E “como é que eu vou explicar isso às crianças?”… Que nada! As crianças estão vivendo! Elas mexem nisto (apontou para o meu telemóvel). Como é que eu vou ensinar uma criança a mexer nisto se é ela quem me ensina a usar um computador? Tá tudo aí! Todo dia nós recebemos lições da vida. Quem vem é que traz a novidade. Se eu chego lá do Brasil agora, eu estou trazendo o que é o Brasil. E você, que está aqui (Lisboa) a mais tempo, tem que me ouvir, não é mesmo? Quem traz novidade é quem vem de uma dimensão que a gente desconhece, e assim os nossos conhecimentos vão ficando caducos. É preciso reciclar-se com quem chega. É lógico que quem chega, tem que conversar conosco para saber como é o espaço aqui. Como é que a gente pode aplicar o que a gente explica? O que é que nós estamos entendendo… O que se passa no mundo…
Essa mudança toda não é só no Brasil ou aqui em Portugal, sabe? Esse capitalismo selvagem, absurdo, totalmente irreal…

Mas, a natureza tem leis. O homem é que tem a moral. A natureza tem leis e na hora ‘H’ ela diz um basta. Olha a pandemia que chegou aqui agora? Botou todo mundo quietinho. Quem sabe isso não é um tipo de chamada de atenção para nos voltarmos um pouquinho mais para nós mesmos; para que a gente possa se conhecer. Só depois que eu me conhecer um pouquinho é que eu posso dialogar contigo. Porque, se não, eu só vou estar sendo uma caixa de ressonância dos meios de comunicação e dos marketeiros, sabe? É o reflexo condicionado de Pavlov… É condicionado… É Hitler agindo no mundo, e, todo mundo pensando de forma igual? Babam na hora que toca a buzina?

Ontem (27/10) um grande maestro da música afro-brasileira se foi, o Letieres Leite. O que a música mundial perdeu?

Eu perdi um parceiro, né? Mas, olhe, eu sou uma pessoa que pensa diferente de tudo isso. Eu creio na continuidade. Eu creio, mesmo, na existência plena. É como se eu, de repente, recebesse uma pancada na cabeça e voltasse ao meu estado de ser parido. Como eu estou aqui encarnado, eu não sei em qual lugar eu estava quando eu fui concebido, e, aquela coisa toda. Assim que eu abro o olho, eu choro, né? E… Todo mundo ri… E eu não me lembro no que eu pensei naquele momento. Como é que eu estou chorando e todo mundo está rindo? O que é que eu vim fazer aqui? Certamente, eu vim para fazer alguma coisa. Eu recebi algumas instruções… Ou… Eu mesmo escolhi a minha tarefa aqui. Mas, eu não me recordo de nada… Porque a vida é ‘um contínuo’, né? É um ‘constantemente constante’. Nós temos que dar essa força de linguagem constantemente… Constante… Assim é a vida. Eu creio sempre na reciclagem das coisas, na renovação das coisas.

Por exemplo: cai a semente do fruto, né? Ou melhor: cai o fruto, com não sei quantas sementes dentro… Cai um sapoti, ou um figo… Seja lá que fruto for… Caiu, tá ali, apodreceu na terra. Aquelas sementes todas foram só de um fruto que caiu, mas ele vai dar ‘N’ sementes. Daquelas ‘N’ sementes que saírem, ‘N’ árvores novas darão ‘N’ frutos; e, daí, serão não sei quantas mil sementes… Então, é como cada um de nós, quando viaja por toda essa terra. Quando a gente larga esse ‘envolto de carne’ em que nós estamos, a gente volta para o espaço. Porém, aí, nós já deixamos plantado aqui o que nós viemos fazer. É o caso do Letieres. Se ele foi agora, é porque ele já plantou, e, aquilo que ele plantou, com a ida dele, não vai parar, pois ele sempre será lembrado. Então nunca se perderá… A gente sempre continua…

O Letieres deixou uma escola. Você quer coisa melhor do que essa? Ele plantou bem. Não fez somente shows. Ele formou pessoas, construiu uma instituição de ensino. Ele vai sempre estar aqui. Não perde, ao contrário… Há milhares de Letieres… Por enquanto… Amanhã, serão milhões. A vida continua. É o legado dele. E nós estamos aqui para lembrar do trabalho que o Letieres deixou.

O carinho que eu tinha por Letieres é uma coisa muito grande… Que eu tinha não, que eu tenho, e, sempre vou ter. Letieres será sempre Letieres, pois nós não morremos… Não! A gente se entristece porque, por exemplo… Eu estou aqui com você, certo? Você então até se afeiçoa a mim, como uma pessoa amiga, que conversa de uma forma aberta, intuitiva, não tem limites, não tem medo de cair no ridículo no que diz. Ao contrário, desafia a vida. É assim que eu penso a vida, sabe? E a vida, que tem tudo para me modificar, modifica… Assim, eu, vou agora dizer o que penso. Aí você gosta, e, de repente, eu desapareço. Mas, se você gostou do que eu te disse, eu não morri. Você será a minha continuidade. E a partir de você, eu terei mil e uma continuidades…


Foto por Micaela Wernicke



Existe alguém dessa nova geração, um artista que lhe chama a atenção e que você gostaria de dividir uma música ou um projeto?

Olha, eu não programo isso muito, não. Eu sou meio, como eu posso dizer… Eu sou meio disléxico. Sou uma pessoa meio ‘fora’, mas sou muito intuitivo e todo baseado na observação da ‘natureza versus o universo’. Eu fico sempre à procura de dicas que a natureza possa me dar. Porque eu acho que a grande fonte de ensinamento é ela própria, né? Eu me coloco como se eu fosse, realmente, parte integrante do meio ambiente. Eu não sou só um observador do meio ambiente. Eu também faço parte dele, então eu tenho sempre que notar de que lado o vento vem pra poder fazer as coisas. Eu tento captar e penso que é isso que pode criar algum tipo de proximidade com a natureza para que ela comece a confiar em você. Pois, naturalmente, a gente só confia em pessoas que a gente tem proximidade. E quando a gente cria proximidade, é aí que se revelam os segredos; à medida em que a nossa intimidade se acentua, e, a natureza só poderá revelar para mim um pouquinho dela se eu criar com ela algum nível de intimidade.

Agora se tem uma pessoa que eu gostaria, sei lá… Eu penso em todas as pessoas que têm esse feeling artístico… Pois, pra mim, antes de tudo, houve a música. Há a música. Haverá música. O livro de todas as religiões diz: “Antes de tudo, se não houvesse a música, o verbo não seria dito. Porque a música é som. Sem som a palavra não soa.”

Ouvindo você falar, me recordei de uma entrevista que fiz com o Criolo. Eu perguntei a ele qual era a importância e a influência da mãe dele na música. Ele revelou que ainda não tinha feito uma canção ao seus pais porque, no meio do caminho, ele começa a chorar. E que a lágrima é a única coisa maior que o verbo.

A lágrima é uma das condições para desinflamar o espírito. Quando se está muito angustiado, o seu espírito está inflamado… E é uma inflamação que antibiótico nenhum cura.


Que lindo! Muito obrigada por essa conversa, foi uma honra estar aqui.

Obrigadinho também, viu?!



Entrevista por Stefani Costa
Foto em destaque por Paola Alfamor

Mateus Aleluia: “Se não houvesse a música, o verbo não seria dito”

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- Latino-americana, imigrante e jornalista. @sttefanicosta