d’O Gajo a Midwife e Cult of Luna: diversidade foi a marca da primeira parte do Amplifest 2022

Outubro é sempre marcado pelos últimos suspiros de festivais alternativos em Portugal. O Amplifest, que ocupou os palcos do Hard Club do Porto durante dois fins de semana, perfez um total de seis dias de usufruto musical, pleno de diversidade e com bastante peso.

A Amplificasom não quis deixar esse evento por meias medidas, e, após o grande hiato devido aos problemas pandémicos, resolveu ir à frente com um festival imenso de degustação sonora e cultural por vários dias. Muita vezes, a começar próximo do horário de almoço, a produção apostou na exibição de interessantes documentários, como ‘Amenra: A Flood of Light’ e ‘Redemptus: Nothing’s gonna wake you up like Suffering’.

O Amplifest começou logo com um enigma presenteando os seus leais fãs: um concerto surpresa de A.A. Williams, que, recentemente, nos tinha visitado a abrir para Mono. Iniciamos a nossa empreitada da melhor forma, com Jo Quail, a virtuosa violoncelista que em tempos já nos tinha visitado no Entremuralhas e deixado saudades. Combinando loops e mestria no tocar, Jo deixava-se ir muitas vezes, levando-nos consigo em viagens a ambientes sonoros de atmosfera clássica, mas, ao mesmo tempo, experimental.

Praticamente a ‘prata da casa’, os Process of Guilt seguiram-se no Bürostage e não desiludiram com a apresentação do seu último trabalho, Slaves Beneath the Sun. O sludge penetrou fundo nas entranhas do Hard Club, sempre com a penumbra a dominar o palco, para que fechássemos os olhos e deixássemos que o corpo fosse dominado pela cadência arrastada em um ritualístico balançar.

Do outro lado, no palco Beerfreaks, esperavam-nos os Vile Creature. O agora trio canadiano auto-intitulado de “angry queer gloom cult”, trouxe consigo o muito aclamado Glory, Glory! Apathy Took Helm!, que preencheu de forma intensa o intimismo da Sala 2 com uma performance visceral da dupla de vocalistas.

Aguardava-nos outra belíssima surpresa a elevar a tensão emocional tão característica do Amplifest. A apresentação dos familiares Amenra se deu em formato acústico, opção essa resultante da ausência de Tim de Gieter, que se recupera de uma cirurgia. Embora num formato diferente, a intensidade esteve em níveis elevadíssimos, mesmo com uma performance mais simplista do que o habitual. Além dos seus temas, fomos agraciados com covers de Townes van Zandt e Tool, além de fechar com ‘Song to the Siren’, popularizada pelos This Mortal Coil.

Toda essa solenidade contrastou com a simplicidade de Midwife no palco seguinte. Apenas com a sua guitarra e pedais de efeitos, Madeline Johnston levou-nos a uma viagem intimista de shoegaze, onde a distorção, ora na voz ou na guitarra, distinguiam-se em relação à melancolia da artista. Já do outro lado do espectro, e, quase a finalizar o dia, tivemos Dälek a lembrar projectos como Cypress Hill ou Public Enemy, pois, naquele momento, o assunto em palco era outro. O hip-hop, misturado com samples obscuros, fizeram a multidão vibrar por um bom tempo.

A fechar o dia e em substituição aos Petbrick, os Prison Religion, duo de noise que busca inspiração entre o metal e o punk hardcore, começaram imersos quase em plena escuridão no meio da Sala 2. Só era possível vislumbrar pinceladas de luz aqui e ali, a aumentarem a intensidade sonora, passando por cima dos ainda resistentes ao dia.



O sábado iniciou-se muito bem com o doom dos Pallbearer. Com a tónica na apresentação de Forgotten Days, assistimos a uma construção metódica de riffs esmagadores e paisagens sonoras, permitindo que a multidão presente bebesse cada nota e cada ritmo com gosto.

Seguiram-se os Telepathy no palco Beerfreaks, colectivo britânico detentor de uma sonoridade obscura, mas com bastante presença de palco. Eles conseguiram conquistar fãs de post metal, black metal, doom e sludge, demonstrando a forma preenchida de nuances que o grupo tem de perspectivar o metal como género.

Elder foi outro projecto bastante aguardado, levando muita gente à Sala 1 do palco Bürostage para uma tarde de sábado. Recebidos com entusiasmo, demonstraram que não são uma banda stoner qualquer. A sua música inclui melodias complexas, de um rigor pouco usual para um grupo do género.

Seguiram-se os Irist, num estilo porventura diferente do que fora apresentado até ao momento, com o vocalista brasileiro Rodrigo Carvalho resoluto na sua presença em palco. Ele estava sempre atento à reacção do público enquanto os temas eram debitados pela banda. Notam-se influências de nomes como Gojira, mas, apesar da qualidade e da competência demonstradas, esperava-se alguma singularidade no estilo que fizesse o projecto sobressair no meio de um line up tão extenso.

Brutus, um trio belga que se juntou inicialmente como uma banda de tributo ao Refused, era um nome forte no cartaz. Porém, rapidamente se tornaram num projecto bastante imponente, criando a sua própria música. Contendo uma mistura de metal progressivo, punk rock e shoegaze, o grupo cria uma bela parede sonora, algo que só poderá ser verdadeiramente apreciado quando visto ao vivo, como nós tivemos o privilégio no Amplifest. Stefanie Mannaerts é uma verdadeira titânide, rasgando as peles dos timbalões com toda a garra, ao mesmo tempo que canta e interage com o público e restantes membros da banda.

Após a descarga energética de Brutus, o rest & relaxation d’ O Gajo foi muito apreciado, acompanhado da sua tradicional viola campaniça, instrumento de raiz tradicional que faz parte da história centenária e cultural portuguesa. Um momento de música do mundo, que acabou por não destoar numa filosofia tão abrangente como é a da Amplificasom.

Esse pequeno momento de calmaria conduzia-nos a um dos instantes mais apoteóticos da noite com a apresentação de Oranssi Pazuzu. Concentrados no Mestarin Kynsi, álbum editado em 2020, o grupo levou-nos para uma viagem sensorial a um universo perturbador e surrealista, onde, apesar da sua costela de black metal, quase que nos davam, momentaneamente, uns certos laivos de The Young Gods em termos de dissonância industrial e visual. A imagem do trombone a ser tocado lembrava quase que um navio a atracando em um porto numa densa noite de nevoeiro. A performance ficou para sempre carimbada nas memórias desse concerto. Foi um labirinto sombrio de sensações desconcertantes.

Seguidamente, algo bastante diferente de todo o cartaz nos aguardava. O post punk dos Fotocrime, um projeto estadunidense, serviu em boa hora para sacudirmos os fantasmas do concerto passado dos Pazuzu e descontrairmos com temas que nos levavam a sons bastante retirados da estética gótica, além de nos permitir momentos de dança e sorrisos entre a plateia.

Outro momento apoteótico da noite, a fechar da melhor forma os palcos de sábado, chegou com os transgressores Putan Club, sempre intervencionistas, multiculturais, a apostarem na proximidade com o público. Tocando no seu âmago e tentando chegar até as almas e corações, a banda começou impondo a quebra de barreiras, a infração de limites. O som é sinónimo dessa ausência de fronteiras entre o punk, industrial, étnico, techno, whatever. Ali, viveu-se mais uma vez a comunhão da música, a conjunção humana e a quebra de limites (mal sabíamos nós que a experiência se viria a repetir num concerto-surpresa dos mesmos no Mouco, gentilmente oferecido pela Amplificasom).



E eis que chegamos ao terceiro dia, ainda vivos e com sede de mais, embora algum cansaço já fosse notório. Provavelmente, mais esperados num horário próximo da obscuridade, os Wolves in the Throne Room abriram as portas do palco Bürostage, construindo uma atmosfera de sons tenebrosos de black metal progressivo e enfeitiçando o público logo no primeiro instante.

O palco Beerfreaks recebeu seguidamente Clothilde, uma mudança contrastante de estilos em todos os sentidos. De costas voltadas para o público, a gerir um imenso ‘cockpit’ de luzes e cabos como se conduzisse uma Millenium Falcon, Clothilde desfiava as suas composições sonoras interessantes, criando paisagens de melodias que exploravam frequências elétricas e comprimentos de onda.

Após mais um dedilhar de vinis nas bancas presentes no main floor do Hard Club, fomos espreitar os franceses Birds in Row. Eles executaram um concerto com demasiada energia e intensidade, plenamente absorvidas pela plateia, essa que acusou o toque e não parou o mosh e o crowdsurfing enquanto o som não se esgotava. A malta, logo a seguir, não perdeu o andamento e aderiu a Tenue, que expôs de forma intensa Territorios, composto por um único tema de 29 minutos, com mensagens intervencionistas de anti-autoritarismo.

As emoções continuaram a ser instigadas com a presença dos Caspian, que regressaram com uma actuação onde os jogos de luzes desempenharam um papel tão importante como as melodias que foram sendo construídas em cima do palco. A apreciação pelo concerto foi conseguida através do silêncio respeitável emparelhado com um headbanging hipnótico. A música protagoniza todo o discurso, que foi transmitido de forma emocionante.

Para haver um intervalo em toda essa intensidade, fomos ver Patrick Walker, o qual tinha tido o infortúnio de não ter a sua guitarra consigo, mas, mesmo adaptando-se a um instrumento desconhecido, conseguiu criar uma atmosfera descontraída e mostrar que é um grande entertainer com algumas tiradas cómicas a intercalar o folk, conquistando os sorrisos do público.

A fechar a rodada inicial do festival, Cult of Luna nos ofereceu um formidável concerto de qualidade inegável. Silhuetas poderosas, num palco muitas vezes coberto de fumo, iam debitando temas de The Long Road North, o último trabalho de estúdio da banda.

O primeiro fim de semana tinha acabado para nós e agora só restava-nos enfrentar uma semana de trabalho até chegarmos ao capítulo seguinte…



Texto por Miguel Brandão
Fotos por Helena Granjo
Edição por Stefani Costa

d’O Gajo a Midwife e Cult of Luna: diversidade foi a marca da primeira parte do Amplifest 2022