Entrevista por Sofia Augusto publicada em parceria com a Revista Sabiá
G Fema, rapper portuguesa, tem conquistado espaço no cenário musical com uma obra marcada pelo feminismo e pela sensibilidade em relação às suas origens cabo-verdianas. Em seu último single, ‘Ami É Fema’, a artista presta homenagem às mulheres que lutam por representatividade em uma sociedade dominada por homens
Nascido há 50 anos no bairro do Bronx, em Nova York, o rap marcou a história da música em sua trajetória e se tornou um dos gêneros mais consumidos do mundo. Esse tipo de música canalizou e deu voz à frustração da juventude negra e latina nos Estados Unidos, e hoje figura no topo das paradas musicais, estando entre os dez principais da lista Hot 100 da Billboard e os cinco artistas mais ouvidos no Spotify em 2022.
Este sucesso, contudo, não foi alcançado sem atritos. Por sua origem, o rap sempre assumiu o lado das comunidades marginalizadas, da juventude periférica, negra, latina e trabalhadora. Essa postura clara gerou e ainda gera uma série de estigmas por parte de uma parcela da sociedade que vê a origem social do rap como um demérito. Sua posição bem demarcada no campo social, entretanto, encontra contradição quando analisamos a presença feminina no rap. Mesmo tendo artistas mulheres históricas desde sua fundação, como Queen Latiffa e Lauryn Hill, até grandes nomes contemporâneos como Beyoncé e Rihanna, rappers mulheres ainda se encontram subrepresentadas na cena de rap em geral.
A título de exemplo, a edição de 2022 do festival CENA, marcada pela presença de diversas MCs de peso, como Tasha&Tracie e Mc Drika, contou com apenas 31 atrações femininas entre MCs e DJs, uma minoria em relação às 84 atrações masculinas. Casos como este demonstram que, mesmo com incontáveis avanços em direção à representatividade feminina na cena, o rap ainda é um ambiente dominado por homens. É nessa conjuntura que a rapper portuguesa G Fema lançou neste Dia Internacional das Mulheres o seu último single, ‘Ami É Fema’, uma música em homenagem a todas as mulheres que lutam diariamente para conquistar espaço em uma sociedade dominada por homens.
G Fema é o nome artístico adotado por Ana Maria Semedo. O “G” é uma referência à palavra “guerreira”, e “Fema” é a palavra em crioulo cabo-verdiano para “mulher”. Esses dois elementos, suas raízes cabo-verdianas e o fato de ser mulher, perpassam toda a sua obra, iniciada com o álbum de estreia Reviravolta, lançado em 2012. Filha de imigrantes de Cabo Verde e São Tomé, o rap entrou em sua vida desde muito jovem, tendo como primeiras inspirações rappers estadunidenses como Queen Latifah, Lauryn Hill, Snoop Dogg e Ice Cube.
Esses grandes nomes, juntamente com a cena que já havia em seu bairro, influenciaram-na a entrar no rap. Refletindo sobre sua trajetória, que já tem mais de uma década, G Fema declarou que viu muitos avanços em relação à presença feminina no rap: “Sinto que, nesta década, o rap se transformou em um espaço bem mais aberto às mulheres. Quando comecei minha trajetória, eu era uma das primeiras a estar lá, e ao longo do tempo, fui vendo várias outras raparigas começarem a cantar e fazer rap”.
Embora tenha diversas influências internacionais, os temas presentes na obra de G Fema demonstram uma grande sensibilidade da rapper em relação às suas origens, de tal maneira que é impossível descrevê-la sem nos referirmos aos principais elementos de sua identidade artística. O primeiro destes é a presença da língua materna, o crioulo cabo-verdiano, em sua obra e identidade artística. Mesmo tendo nascido em Portugal, crescer nos bairros de Lisboa onde a comunidade cabo-verdiana morava fez com que, mesmo tendo nascido em um país distinto daqueles em que seu pai e sua mãe nasceram, ela ainda assim compartilhasse com eles uma mesma língua mãe.
“Na zona em que vivíamos”, relatou a artista, “já havia uma comunidade cabo-verdiana estabelecida. Com isso, todas as pessoas ao meu redor falavam crioulo no seu dia a dia. Então, eu cresci ouvindo e falando o crioulo aqui em Portugal e por isso adotei a língua em minha música. É por ela que faço as minhas letras e é por meio dela que canto”. Essa característica marcante em sua música insere G Fema em um movimento no rap português que agora assume maior visibilidade: o Rap Crioulo.
Formado dentro da comunidade de imigrantes vindos de Cabo Verde e São Tomé, o rap crioulo surgiu dos filhos da primeira geração de imigrantes nos anos 70 e 80. Muitos deles procuraram em Portugal melhores condições de vida, mas se viram esquecidos pela sociedade portuguesa, estando à margem da assistência do estado, sofrendo com o desemprego e vivendo em bairros populares estigmatizados e segregados dentro da própria sociedade portuguesa.
Nascido neste contexto, o rap crioulo apresenta como característica principal o uso do crioulo cabo-verdiano em suas canções. Dessa forma, os cantores desse movimento foram parte importante da cena de rap portuguesa, justamente por darem voz a uma geração que era sistematicamente silenciada ao utilizar sua língua materna. Assim como no início do próprio rap, a posição social bem delimitada desse movimento fez com que por muito tempo fosse invisibilizado e excluído do circuito musical mainstream.
Por muito tempo, cantar em crioulo cabo-verdiano era visto como uma escolha artística limitada que impediria o sucesso dos rappers. Graças a diversos artistas, incluindo a própria G Fema, essas concepções vêm sendo paulatinamente desconstruídas à medida que mais músicas cantadas em crioulo cabo-verdiano conseguem visibilidade, principalmente por meio das redes sociais.
Em sua carreira que já dura mais de uma década, G Fema nos relatou que viu avanços significativos na cena do rap crioulo: “Hoje em dia, o rap crioulo está mais desenvolvido, chegando até a passar na rádio. Eu acredito que isso já foi um grande avanço”.
Este avanço mencionado pela rapper pode ser observado também na nova fase de sua carreira, inaugurada pelo recente lançamento de seu single ‘Ami È Fema’. Produzido ao longo do último ano, seu novo single, junto com o videoclipe, demonstra um amadurecimento da rapper em suas rimas e estilo. G Fema, que já abriu shows para artistas históricos da cena do rap, como Racionais MC’s e Dexter, além de ter se apresentado na última edição do Rock in Rio Lisboa, parece ter elevado sua linguagem musical a um novo patamar.
No cerne deste novo momento artístico, encontra-se o tema das mulheres e de sua luta. Assim como a presença do crioulo cabo-verdiano reflete a conexão que Fema tem com sua comunidade, isso também pode ser visto pela presença feminina nos temas de suas letras.
Ao ser questionada sobre como sua experiência enquanto mulher influencia seu processo criativo, a rapper deu uma resposta ao Sabiá que demonstra ainda mais essa conexão: “Ao longo de minha carreira, diversas situações e violências que afetavam a mim, minhas amigas e pessoas conhecidas apareceram. Minha resposta a elas é simplesmente voltar ao papel e escrever mais letras”.
Essa postura de escrever o que se vê é o que dá força e impacto às composições e o que vem garantindo seu reconhecimento (inter)nacional. Suas letras falam de mulheres reais em situações reais, cantadas por uma mulher que também procura em sua vida pessoal apoiar e dar suporte às mulheres com as quais ela convive, fato que pode ser visto em detalhes simples, como o perfil de sua equipe sendo composto majoritariamente por mulheres.
Refletindo ainda sobre como essa temática é mostrada em seu novo lançamento, ela declara: “Sou mulher quando estou no banco, eu sou uma mulher quando assisto futebol, eu sou mulher quando sou mãe e também quando sou trabalhadora. Tudo isso aparece em Ami È Fema, esta força que temos em nós”.
Dessa forma, o lançamento deste single, o primeiro de 7 que serão lançados este ano, nos mostra um horizonte animador em relação aos futuros projetos de G Fema. Sua sensibilidade e estilo aliados à relevância de seus temas trazem luz ao que o rap pode ser caso permitamos que mais mulheres, como G Fema, tenham espaço dentro da cena.
Entrevista por Sofia Augusto (Revista Sabiá)