Por Stefani Costa para o Correio Braziliense
Trabalhadores contactados pela Galáxia Gulosa LDA (empresa ligada ao setor de restauração com sede em Carcavelos, região metropolitana de Lisboa) acusam a entidade de ofertar vagas com condições de trabalho análogas à escravidão em um evento a decorrer durante a Jornada Mundial da Juventude.
O serviço oferecido pela empregadora consiste em uma jornada de trabalho de 36 horas consecutivas nos dias 5 e 6 de agosto no Parque das Nações e em Loures. Segundo os áudios a que tivemos acesso no fim da tarde do dia 3 de agosto, Margarida Matos, responsável pelo contato com os trabalhadores, afirma que as atividades estão previstas para iniciarem às 9 horas da manhã de sábado seguindo até às 21 horas de domingo.
A princípio serão formados grupos de 10 a 12 pessoas, já contando com o chefe de equipe. Esses funcionários vão trabalhar neste evento em um bar montado pela Galáxia Gulosa e cada um deverá receber o valor base de 150 euros mais 6,5% de comissão (mas somente caso as equipes consigam ultrapassar a meta de vendas). Entretanto, a empresa não informa qual seria essa meta, apenas afirma que haverá uma tabela com as informações e com os possíveis bônus. No mais o valor da porcentagem seria dividido entre todos os colaboradores, incluindo o responsável de gestão.
A recrutadora explica ainda que não sabe qual será o método de pagamento e quando será feito. “Eu ainda não tenho nenhuma atualização a dizer, do tipo ‘ok, então eles vão receber dia x’. Claramente não vão receber no dia em que acabar o evento, mas eles não vão demorar a pagar. Em relação a como vão fazer o pagamento, também não tenho essa informação ainda 100% validada.”
Todas as pessoas contactadas por Margarida Matos receberam as mesmas instruções que partiram de um número de telefone ligado à YourStore, empresa de marketing digital fundada em 2023 e com sede em Carnaxide, no município de Oeiras. Em seu site oficial, o estabelecimento diz ter como propósito “oferecer produtos que permitam otimizar o seu tempo e melhorar a sua qualidade de vida, deixando a sua rotina mais prática e funcional.”
Outra exigência para trabalhar no bar durante o evento organizado pela Galáxia Gulosa é ter idade acima dos 16 anos e cadastro na Segurança Social para que seja possível a realização de um suposto contrato que só será disponibilizado aos trabalhadores no próprio sábado, pouco antes do início das atividades. A empresa também não garante se quem está em situação de desemprego, recebendo subsídios ou abonos perderá o seu benefício caso assine o contrato, deixando claro que é o próprio contratado que deve se informar quanto a isso, pois a Galáxia “não pode tratar dos problemas pessoais de todos.”
Mais um abuso relatado pelos denunciantes é que ninguém poderá sair do recinto, pois, segundo a empresa, se trata de um evento de grande dimensão, com mais de 1,5 milhões de pessoas e que todas as ruas e acessos serão “cortados ou condicionados”, sendo assim, quem sair não poderá voltar. “Nós não podemos restringir a liberdade das pessoas de saírem, mas não vai ser viável sequer essa opção”, diz Margarida em uma das mensagens.
Além disso, nenhuma das empresas garante transporte, banheiros, balneários e alojamentos adequados aos trabalhadores que terão que pernoitar durante a jornada. A recrutadora chega a dizer que cada um deve levar o seu próprio colchão, saco de dormir ou tenda. “É aconselhável que as pessoas levem mais coisas para ir petiscando ou, sei lá, lanchando. Não aconselhamos também a levarem o carro, sobretudo para o Parque das Nações, que é só zona vermelha, portanto o parquímetro vai ser muito caro. Porém, isso já fica à vossa responsabilidade”.
Trabalhe o quanto aguentar
E não são apenas as equipes de bar que estão sendo contratadas pela Galáxia Gulosa, via Your Store, para trabalharem no evento realizado durante a Jornada Mundial da Juventude. Também foram oferecidas vagas para aqueles que preferirem labutar como ambulantes, ou seja, caminhando pelo recinto com mochilas cheias de produtos. Segundo Margarida Matos, quem optar por essa “modalidade” não terá o mesmo valor base de 150 euros, ganhando apenas 0,40 cêntimos por unidade vendida (águas e colas): “cada um poderá ganhar o que quiser e fazer o horário que aguentar.”
Entende-se que o trabalho análogo à escravidão acontece quando o empregador não oferece condições dignas de trabalho, deixando o empregado em situação humilhante e com jornadas árduas. São quatro as categorias para a definição de trabalho escravo, que podem ser aplicadas de forma mútua ou isolada: condições degradantes, trabalho forçado, jornada exaustiva ou servidão por dívida.
De acordo com a Autoridade para as Condições do Trabalho em Portugal, as violações mais graves estão relacionadas com a carga excessiva de trabalho, já que por lei é proibido turnos de 36 horas sem horários estabelecidos para descanso, sendo permitida, no máximo, 12 horas de trabalho com intervalo obrigatório de 11 horas corridas em locais específicos como, por exemplo, em hospitais. A ACT também nos informou que é proibido dizer ao trabalhador que ele não poderá deixar o recinto durante as pausas e que é completamente ilegal que não tenham acesso a banheiros no local de trabalho.
“É claro que vai poder descansar, não é um trabalho direto, até porque nós somos seres humanos, não é? Não aguentamos, como é óbvio. Enfim, são as condições que temos. Peço desculpas, mas só há autorização a pessoas que realmente consigam fazer o horário”, reforça Margarida em um dos áudios.
Sobre os contratos para essa “modalidade”, os trabalhadores afirmam que ainda não tiveram acesso às respectivas cláusulas do contrato.
Conforme disse a atendente da ACT, a proposta para “ambulante” está completamente irregular e “nada nela está prevista em lei”. A funcionária também pontua que o pagamento base aos trabalhadores que optarem pelo serviço no bar está abaixo do mínimo nacional, que é de € 4,38/hora e não os €4 euros que estão sendo oferecidos.
A última estimativa divulgada em setembro de 2022 pela Organização das Nações Unidas revelou que 50 milhões de pessoas são vítimas da “escravidão moderna” no mundo. Segundo esses dados da ONU, 86% dos casos de trabalho forçado ocorrem no setor privado. Em situações de exploração sexual comercial forçada a taxa é de 23% e atinge quatro em cada cinco mulheres e/ou meninas. Já o trabalho forçado imposto pelo Estado tem uma representação de 14%. De acordo com os números, pelo menos uma em cada oito pessoas que realizam trabalhos análogos à escravidão é criança (3,3 milhões).
Entramos em contato com a empresa Galáxia Gulosa LDA, mas não tivemos resposta até o fechamento desta matéria.
***Atualização, quinta-feira, 10 de agosto de 2023 – direito de resposta à empresa Galáxia Gulosa LDA publicada pela jornalista Stefani Costa no Blog do Vicente para o jornal Correio Braziliense:
Para queixas e denúncias relativas a assédio laboral ou condições de trabalho análogos à escravidão, a Autoridade Para as Condições do Trabalho em Portugal disponibiliza um canal exclusivo.