Tem sido muito comum nos últimos anos notícias sobre a insatisfação do público com artistas que têm manifestado opiniões políticas durante as suas apresentações (Roger Waters em 2018 e Titãs em 2023, são dois dos exemplos vistos em solo brasileiro).
O Rock e o Heavy Metal, apesar de gêneros musicais que desde as suas origens têm vínculos com temas políticos, não escaparam da lógica do capitalismo, tornando-se produtos que seus adeptos consomem sem um esforço de conhecê-los minimamente sequer. Nesses casos citados, há críticas contidas nas letras que carregam um teor de aversão ao conservadorismo, além de fortes motivações à rebeldia.
Aproveitando esse consumo ingênuo praticado por boa parte do público do Heavy Metal, escrevo esse texto baseado numa matéria publicada em 2014, no site Metal Blast, envolvendo o jornalista e fotógrafo J Salmeron e Kobi Farhi, vocalista da banda Orphaned Land.
Primeiramente, gostaria de destacar a coragem e a qualidade argumentativa de J Salmeron por tocar em um assunto pouco conhecido e difundido, principalmente em países onde a mídia ocidental é quem dita as regras na distribuição da informação pelo mudo.
Israel x Palestina
É perceptível que uma parte significativa dos headbangers detesta o envolvimento entre a política e o seu gênero musical favorito. E por esse motivo, o site Metal Blast também merece elogios pela decisão de não desvencilhar qualquer temática social da música, tanto que o seu lema é “Free speech, heresy, culture & Heavy Metal” (“Liberdade de expressão, heresia, cultura e Heavy Metal”, em tradução literal).
A banda Orphaned Land, famoso grupo israelense fundado em 1992, estava divulgando em 2014 o álbum All Is One quando J Salmeron parecia ter escrito uma resenha deste disco, mas na verdade se tratava de uma crítica à falsa mensagem de paz que a banda diz promover em suas letras e apresentações (a união e celebração das três maiores religiões monoteístas: cristianismo, judaísmo e islamismo). J utilizou bons argumentos e não cuspiu ódio como muitos interpretaram. Essa publicação gerou réplicas e tréplicas entre os envolvidos onde analiso o nível das refutações.
A principal crítica de J Salmeron ao grupo foi sobre o silêncio referente ao massacre que Israel cometia naquele ano na Faixa de Gaza, fruto da Operação Margem Protetora, que resultou em mais de duas mil mortes e onze mil feridos entre os palestinos. A Faixa de Gaza, território palestino, está isolada do resto do mundo desde 2007, tendo a entrada e saída de pessoas, alimentos, medicações e suprimentos sob o controle do Estado israelense.
Com coerência, J elencou a postura omissa do Orphaned Land, que não se posicionou sobre os bombardeios, nem ficou ao lado dos grupos de Direitos Humanos que condenaram aquela ofensiva, baseando-se em um gráfico que tornou explícito o desequilíbrio do conflito: morrem muito mais palestinos do que israelenses. Ao não ter feito nada pelos “irmãos” árabes quando a vida deles estava em perigo, o Orphaned Land servia (e ainda serve) de propaganda ao Estado de Israel, sedo que o lema da paz carregado por eles é uma tática que resulta em lucro.
Kobi Fahri divulgou uma carta aberta com suas refutações. E nessa carta fica bem explícito os principais e frágeis argumentos do vocalista. Num trecho ele fala que a irmandade histórica entre árabes e israelenses está sendo esquecida. Essa afirmação não corresponde à realidade, pois o processo de ocupação colonial israelense tem apagado a história palestina, demolindo vilarejos, construções seculares e rebatizando-as com nomes e referências hebraicas. Esse processo foi detalhado em várias pesquisas científicas, e aqui no Brasil pode ser verificado no livro Al Nakba – um estudo sobre a catástrofe palestina (Editora Sundermann).
Outro argumento frágil de Kobi é quando ele deixa entender que por uma pessoa não viver num determinado lugar, ela não tem autoridade suficiente para falar sobre a realidade daquele local. Como se alguém precisasse morar no Iémen para ter a certeza da fome e das mortes que lá ocorrem por uma guerra. Tampouco precisamos estar no continente africano para atestar a extrema pobreza que muitos países enfrentam. A tecnologia nos traz consistência empírica e ferramentas eficazes para uma pessoa poder opinar sobre uma região em que ela não se encontra fisicamente.
Kobi também afirmou que os israelenses corriam em busca de abrigos para os palestinos vítimas dos bombardeios. Outra afirmação improcedente. Israel, todos os anos, avança nos territórios palestinos, destruindo casas e bairros inteiros, nos chamados “assentamentos ilegais”. A ONU condena os assentamentos de Israel em território palestino confirmando sua ilegalidade com base no Direito Internacional.
Por fim, Kobi negou a solução política e disse que a paz será estabelecida quando “aprendermos a amar uns aos outros, como os irmãos fazem”. Um argumento que só encontramos em cultos cristãos ou durante palestras de coaches charlatões. Por mais que a política nos traga ciclos de esperança e desesperança, sem ela, a vida em sociedade piora. A própria guerra é a negação da política.
A réplica e a tréplica
Na resposta, J Salmeron justificou que não está do lado certo do conflito por opinião, mas sim por estar de acordo com a resolução 242 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, que está em consonância com Corte Internacional de Justiça e ONG’s como a Anistia Internacional, Human Rights Watch, Médicos Sem Fronteiras, B’Tselem e a Cruz Vermelha.
Ele ainda lembrou que o armamento utilizado por Israel era de alta precisão, enquanto os mísseis disparados do lado palestino foram fabricados de forma artesanal, sendo incomparáveis com o poder bélico sionista. Isso também explica o motivo pelos quais morrem muitos mais palestinos do que israelenses. J reforçou ainda que, por Kobi ser uma figura pública e por ter ganhado fama e dinheiro falando de paz na região, ele deveria ser honesto sobre o que o país dele estava (e ainda está) fazendo.
A tréplica de Kobi foi curta e reforça seu aparente despreparo argumentativo. Ele iniciou as refutações afirmando que os crimes de guerra eram duplos, igualando as ações entre Israel e Palestina. Uma manobra fácil de desmentir, porque, como já foi abordado, o poder bélico de Israel provoca muito mais mortes e destruição.
Depois seguiu com outra falácia ao dizer que as mídias de massas constantemente mostram meias verdade. A imprensa hegemônica adota uma narrativa pró Israel, principalmente após o 11/09/2001 nos EUA em sua ‘Guerra contra o terror’ (que aumentou a xenofobia contra os árabes e muçulmanos). Você não verá em nenhum desses meios de comunicação matérias explicando as origens do conflito, ou exibindo tantas resoluções internacionais decretando Israel como entidade opressora nesse processo de limpeza étnica que os palestinos vêm passando desde 1947.
Kobi não respondeu nada do que foi apontado por J Salmeron, e ainda concluiu sua refutação julgando que ambos estão errados, numa falsa simetria criminosa perante os valores estatísticos que temos em mãos. Na tréplica, J relembra que Israel começou a ocupação bem antes da existência do Hamas (grupo islamita que atua como partido político e organização social, que possui coletivos internos radicais, considerados terroristas pelos EUA, União Europeia e Israel), e que se negava a negociar com o Fatah (partido político que governa a Cisjordânia e já governou a Faixa de Gaza).
J Salmeron também questionou o quão vaidoso Kobi seria pensando resolver um problema tão sério apenas por ter um amigo palestino (Abed, da banda Khalas). Por fim, deixou seis perguntas simples e objetivas que até os dias de hoje não foram respondidas por Kobi.
Omissão, cinismo e imoralidade
Por não ter sido publicado em um site de maior audiência, tampouco traduzido para outros idiomas, esse breve debate passou despercebido com o passar do tempo. Apesar disso, considero que há uma relevância muito grande nessa discussão porque ela expôs a fragilidade da mensagem do Orphaned Land através da fraca argumentação do seu vocalista.
Kobi forçou “ingenuidade” ao achar que poderia dar uma lição em ambos Estados por uma turnê que o Orphaned Land fez com uma banda palestina e que resultou em um prêmio de revista. Ele negou os aspectos políticos de um conflito que perdura por mais de 70 anos e usou como argumento “podemos aprender a ser irmãos”.
Afirmar que todos estão errados e silenciar diante de resoluções, relatórios e trabalhos científicos que comprovam, ano após ano, que os palestinos estão inseridos num processo de apartheid promovido por Israel pode ser interpretado como omissão, cinismo e imoralidade. Compreender processos históricos com seriedade é fundamental para entendermos os conflitos geopolíticos deste mundo.
“A Europa é indefensável”
Antes que me julguem como parcial, também aponto algumas incongruências na abordagem do J Salmeron. Ele se utiliza de uma falsa simetria entre as ações cometidas por opressores e as reações dos oprimidos quando iguala o Governo e o Exército de Israel com o Hamas, colocando-o junto de grupos terroristas como ISIS e Al-Qaeda.
Esse tipo de argumento pode ser fruto inconsciente da propaganda ocidental contra o oeste da Ásia, que coloca árabes e muçulmanos e suas instituições como sub-humanas, sub-desenvolvidas, naturalmente violentas e extremistas. Uma visão orientalista, muito bem explicada pelo pesquisador palestino-estadunidense Edward Said. J Salmeron é europeu, e sabemos que até os dias de hoje os países da Europa Ocidental encontram “dificuldades” em reparar os estragos feitos durante séculos de colonização na América Latina, África e Ásia.
Como resumiu bem o poeta, ensaísta, dramaturgo e político Aimé Césaire: “A Europa é indefensável”.
Mas afinal, há hipocrisia?
Respondendo ao título deste artigo: sim, há hipocrisia na mensagem propagada pelo Orphaned Land. Existe um oportunismo na fama deles pelo simples fato que as intenções transmitidas nas letras se contradizem com as atitudes dos seus integrantes. A banda perdeu a oportunidade de denunciar os erros cometidos pelo Estado ao qual fazem parte.
Sim, sabemos que o Orphaned Land não é capaz de resolver esse conflito. Porém, penso que é coerente denunciar as falsas intenções daqueles que lucram em cima da morte de crianças, mulheres e idosos, além de prisões arbitrárias, bombardeios, checkpoints, desrespeito à autodeterminação dos povos e quebra da soberania de um povo.
A principal função deste texto é fazer com que o leitor reflita.
Inclusive, o autor deste artigo já foi um admirador do Orphaned Land. Não só apreciava a “intenção” da banda, como também a música produzida por eles. Após se informar minimamente sobre a Causa Palestina, e antes mesmo de chegar nesse debate pelo site Metal Blast.
Ficou evidente que o Orphaned Land é um produto que contribui com o soft power de Israel, assim como esse “Estado” se utiliza de outras bandeiras (veganismo, ativismo LGBTQIA+, turismo) para tirar a atenção do mal que eles sabem que estão fazendo contra os palestinos.
Texto por Pedro Valença, guitarrista da banda Pademmy
Edição por Stefani Costa