O primeiro show de Roger Waters em São Paulo no dia 11 de novembro, com a turnê This is Not a Drill, superou todas as expectativas, inclusive de quem já está acostumado com a grandiosidade de suas produções. Como ex-membro do Pink Floyd, uma banda que sempre abordou questões políticas em suas composições, o músico, agora aos 80 anos, pode ter testemunhado a evolução do mundo desde o início de sua carreira nos anos 60. Mas, lamentavelmente, 2023 não se revela substancialmente melhor.
Ao mesmo tempo que parece amar o silêncio, também tem uma presença barulhenta e vibrante. Essa presença que ele assume no palco, torna a experiência do público muito mais vívida. Para os desavisados e distraídos na plateia, o som de uma explosão ou de um tiro disparado inesperadamente, ecoa entre uma canção e outra.
As imagens de crianças, mulheres e homens projetadas no telão, com o foco sempre nos olhos, nos lembram que o que vivenciamos naquele momento é uma representação, um treinamento, enquanto do outro lado da tela, no mesmo segundo em que mais de 40 mil pessoas cantam em uníssono, há quem esteja enfrentando um temor real diante de uma ameaça iminente. A distância entre a ficção e a realidade não é tão ampla quanto imaginamos.
O recado transmitido é claro e urgente: a preocupação abordada por Waters deve ser compartilhada por todos nós. Ao iniciar o espetáculo com ‘Comfortably Numb’, o músico prepara a audiência para as impactantes mensagens que se seguirão. Waters compreende que o rebanho de ovelhas entorpecidas precisa despertar, e ele abraça essa missão não apenas como um músico, mas como um ativista.
Como membro de uma das maiores bandas que já existiram e com um público imenso, o compositor reconhece o poder de sua voz e a utiliza para expressar suas opiniões. Logo no início do show, após passar por Brasília, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Belo Horizonte, ele dirige-se ao público paulistano com uma mensagem direta: “Se você é daqueles que ama o Pink Floyd, mas não concorda com as posições políticas de Roger, talvez seja melhor se retirar para o bar agora.”
É evidente que entre os presentes existam opiniões divergentes. Em meu entorno, encontrei apenas pessoas que concordavam fervorosamente com cada palavra de Roger Waters, que vibravam a cada mensagem no telão, pessoas que compartilham a visão de um mundo melhor. No entanto, mesmo entre aqueles que discordam e estavam ali para prestigiar um ídolo enquanto reservavam suas ressalvas, a inegável força impactante de Roger Waters é palpável.
Ele consegue atingir, atravessar, inspirar e incomodar pessoas com as mais diversas ideologias. Ninguém sai ileso de seu espetáculo; todos são tocados por sua inquietação. Concorde ou não, quem estava ali precisou ouvir não só as músicas, mas cada palavra do músico. Um ponto importante, o telão mostrava textos tanto em inglês, quanto em português. Houve quem preferisse fechar os olhos? Não presenciei essa cena.
Ao escolher fazer flutuar sobre nossas cabeças uma ovelha, lembrei-me da frase atribuída a Alexandre, o Grande: “Eu não temeria um grupo de leões conduzido por uma ovelha, mas sempre temeria um rebanho de ovelhas conduzido por um leão.” Qual é o leão que nos conduz hoje? Isso é algo para se refletir.
Outra lembrança de ovelhas muito obedientes é o recente caso do ‘apagão’ em São Paulo no início de novembro, no qual o prefeito, Ricardo Nunes, escolheu culpar as árvores. Houve quem o defendesse. Segundo a Enel, pelo menos 4,2 milhões de pessoas ficaram sem energia na capital paulista e em 23 municípios da região metropolitana. Quando o porco flutua sobre nossas cabeças pedindo para não darmos ouvidos a Waters, pois ele está louco, só pude visualizar os grandes milionários e bilionários. Esses indivíduos escolhem nosso destino enquanto estão em casas bem protegidas, com ar condicionado e gerador de energia.
Entre alguns nomes que aparecem como um dever público de manter a memória viva, estava o nome de Marielle Franco, como vítima de um sistema corrompido. No setlist entraram canções do álbum Animals, e Waters fez questão de citar o livro que foi a grande inspiração, ‘Revolução dos Bichos’, de George Orwell, também falou do livro ‘Admirável Mundo Novo’ de Aldous Huxley, o que é essencial em tempos de TikTok, e legendas curtas: despertar o interesse pela literatura.
Waters também destacou a bravura da soldada estadunidense Chelsea Manning, que corajosamente vazou um vídeo que exibia cenas perturbadoras de um helicóptero apache dos EUA atirando e executando o fotógrafo da Reuters, Namir Noor-Eldeen, de 22 anos, e seu assistente e motorista, Saeed Chmagh, de 40 anos, em Bagdá. Na época, Julian Assange divulgou as imagens por meio do Wikileaks. Lamentavelmente, os responsáveis por esses atos hediondos nunca foram responsabilizados pelos crimes que cometeram e o jornalista australiano permanece encarcerado como se ele fosse o verdadeiro perigo.
Sem receio, o músico apresentou nos telões as imagens de ex-presidentes dos EUA chamando-os de criminosos de guerra. Uma breve busca na internet te mostrará que ele não mente. Joe Biden também foi contemplado com a legenda: “criminoso de guerra apenas começando”.
Um momento especialmente emocionante foi quando Waters homenageou seu amigo de infância e ex-companheiro de banda, Syd Barrett, ao tocar ‘Wish You Were Here’. Todas as fotos e textos que contaram brevemente sobre a história do Pink Floyd e a relação com o amigo levaram o público a um estado de profunda emoção e conexão.
Em alguns momentos, o músico reforçava que estávamos todos em um “bar”, compartilhando aquela sensação juntos, baixando a guarda, aproveitando a comunhão. Apresentando 17 músicas do Pink Floyd, dentro das 24 que contam também com músicas de sua carreira solo, o músico conseguiu cumprir seu papel como o grande roqueiro que é. E será que é preciso lembrar que o rock é contracultura? Pelo jeito sim.
Ao performar ‘Money’, uma crítica contundente ao capitalismo e sua forma de seduzir as massas, mais uma vez o pedido se repetia: “Resista”. Aqui vale abrir um parênteses com uma dica de leitura: ‘A Vida Não é Útil’, de Ailton Krenak. Neste livro, o líder indígena e Imortal da Academia Brasileira de Letras, fala exatamente sobre como as grandes empresas inventam apetrechos que nos deixam distraídos, os brinquedos caros que nos fazem ignorar grandes violências contra pessoas e contra o meio ambiente.
Acho importante compartilhar que ao meu redor pude conversar com algumas pessoas, entre elas um grupo que veio coincidentemente do Nordeste, pois não estavam juntas. Vinícius, que saiu de Pernambuco para ver o primeiro show de sua vida (uma grande estreia!). Arthur, da Paraíba, estava visivelmente emocionado e curtiu cada segundo da performance. Lucas, que veio de Tatuí, interior de São Paulo, me disse que Pink Floyd é a banda da vida dele.
A música tem esse poder de transformar sonhos em realidade, e se Roger Waters decide usá-la para conscientizar e pedir um movimento de ação para um mundo melhor, acho que deveríamos escutá-lo com atenção. Aos que viram seu show pela primeira vez, como eu, ou os que já tiveram o privilégio de presenciá-lo no palco e de compartilhar esse momento único, fica a certeza de que é uma noite inesquecível. Quando as luzes se apagam e o grande espetáculo de Roger Waters chega ao fim, você já não é a mesma pessoa.
Setlist – Roger Waters em São Paulo
Set 1:
1. Comfortably Numb
2. The Happiest Days of Our Lives
3. Another Brick in the Wall, Part 2
4. Another Brick in the Wall, Part 3
5. The Powers That Be
6. The Bravery of Being Out of Range
7. The Bar
8. Have a Cigar
9. Wish You Were Here
10. Shine On You Crazy Diamond (Parts VI-IX)
11. Sheep
Set 2:
12. In the Flesh
13. Run Like Hell
14. Déjà Vu
15. Déjà Vu (Reprise)
16. Is This the Life We Really Want?
17. Money
18. Us and Them
19. Any Colour You Like
20. Brain Damage
21. Eclipse
22. Two Suns in the Sunset
23. The Bar (Reprise)
24. Outside the Wall
Texto por Dani Melo
Foto de destaque por @marcoshermes
Edição por Stefani Costa