Em Lisboa, Angela Davis fala do fim da polícia e lembra dos que sofreram racismo na Ucrânia

Angela Davis e Gina Dent participaram de um debate sobre abolicionismo penal nesta terça-feira (15), em Lisboa. O evento, que aconteceu no Teatro Tivolli, integrou o programa Romper as Grades do festival LEFFEST 2022.

Essa foi a primeira visita de Angela Davis a Portugal.

Antes do início da conversa com as duas escritoras, um protesto organizado pelo Coletivo Vozes de Dentro chamava a atenção daqueles ansiosos que se aglomeravam à porta do teatro. Daniel Rodrigues e Danijoy Pontes morreram no dia 18 de setembro de 2021, no Estabelecimento Prisional de Lisboa, mas, até hoje, não há respostas concretas sobre as causas da morte dos dois jovens. Soma-se ainda o caso de Miguel Cesteiro, encontrado morto na Prisão de Alcoentre em 10 de janeiro de 2022.

Segundo os panfletos entregues ao público, até hoje as famílias de Daniel e Danijoy não tiveram acesso ao laudo médico nem a autópsia dos corpos. O manifestantes também afirmam, através do comunicado, que a Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais – DGRSP acelerou o arquivamento dos processos. Em Portugal, o tempo médio de duração da pena de prisão é considerado o triplo da europeia, sendo que o país é o terceiro do bloco com mais casos de suicídios entre reclusos.

“Quando eu penso sobre o Daniel e o Danijoy, acredito que o que fazemos é manter as memórias deles por perto. Porque eles podem nos ajudar a ensinar o que o mundo pode ser”, declarou Angela Davis ao relembrar, logo a seguir, do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), que tomou conta das ruas dos EUA e do mundo após o assassinato de Geroge Floyd.

Em maio de 2020, na cidade de Mineápolis, o policial Derek Chauvin foi filmado com um de seus joelhos no pescoço de Floyd, que morreu asfixiado depois de nove minutos de sofrimento. Para Angela, as pessoas não se rebelaram simplesmente porque decidiram sair e demonstrar sua revolta. Segundo ela, aquela demonstração foi uma consequência de um trabalho desenvolvido por décadas.

“Não é sempre que vão notar vitórias ao se engajarem em determinados dias. No entanto, se continuarmos a nos organizar, se continuarmos a lutar, campanhas vão gerar mensagens às quais as pessoas jamais imaginaram fazer parte”, sublinha.




Já com a casa cheia, as duas escritoras subiram ao palco para quase duas horas e meia de diálogo. Tanto Angela como Gina agradeceram aos presentes por dedicarem um pouco do seu tempo a ouvir e refletir sobre um assunto complexo, mas que requer atenção e iniciativa. “Acho que é muito importante reconhecer, principalmente para vocês que estão interessados em fazer trabalhos contra as prisões e contra a polícia, que esse não é um assunto discreto. Não podemos presumir que é possível se livrar das prisões sem reorganizar todo a base da sociedade”, disse Davis.

As co-autoras do livro ‘Abolition. Feminism. Now’, também abordaram um pouco sobre a luta antirracista nos EUA, explicando que o movimento nasceu como uma resposta ao surgimento do sistema capitalista global, já que, segundo Angela, as prisões começaram a ser utilizadas em diversos países como um método para abordar aqueles que não estavam aptos a contribuírem com o crescimento econômico.

Olhando fixamente para o rosto dos mais próximos na plateia, a filósofa e militante marxista contou que foi nos anos 80 que ela e seus camaradas começaram a testemunhar essa crescente globalização do capital.

“Eu digo com frequência que, ao longo de toda a minha vida, não consigo me recordar de nenhum momento que fosse possível a qualquer pessoa nos EUA ir em um hospital para ser tratada. Esse já nem é mais o caso. Se você não estiver apto a bancar a comódite que chamam de ‘plano de saúde’, muito provavelmente você vai simplesmente morrer”, relatou.

Mais ao fim do debate, quando a organização abriu as perguntas ao público, a ativista e assistente social Alexandra Santos, mais conhecida como Alexa, tomou o microfone para lamentar sobre o horário do evento, considerando que a escolha impossibilitava a participação de muita gente que merecia ouvir sobre o assunto. Ela também fez uma observação em relação à falta de tradução simultânea para o português, e perguntou sobre o crescimento da extrema-direita no mundo, sobre a educação antirracista e como devemos combater os comportamentos fascistas que têm se perpetuado estruturalmente pela Europa.

A resposta de quase dez minutos elaborada por Angela Davis, também foi um diagnóstico sobre a força destrutiva das políticas imperialistas no mundo e o quanto a espécie humana pode estar com os seus dias contados dentro do capitalismo. Angela aproveitou a oportunidade para falar ainda sobre o racismo contra pessoas negras que tentaram deixar a Ucrânia em fevereiro deste ano quando a Rússia invadiu Kiev, iniciando uma guerra que já se anunciava desde a intensificação do conflito nas regiões da Crimeia e de Donbass em 2014.




“Eu penso mesmo que, especialmente durante este período, é importante reconhecer a forma na qual o imperialismo tem se tornado muito mais perigoso em todo o mundo. Há uma guerra acontecendo na Ucrânia, com um quadro complicado. Não se deve estar satisfeito com respostas simples ao desafiar o imperialismo russo. Estamos cientes da extensão em que africanos e demais povos do mundo enfrentaram formas de racismo na Ucrânia ao tentarem sair do país. Estudantes de diversas localidades da África têm sido sujeitados ao racismo na Ucrânia. Acredito que o que deveríamos enfatizar é uma abertura, um jeito de se pensar de maneira profunda, crítica e diferente.

Eu gostaria de imaginar o mundo sem fronteiras, queria poder visualizar um tipo de mundo que nos permita viver sem guerras, abolindo as prisões e a polícia. Não apenas para simplesmente nos livrarmos dessas instituições terríveis, mas para descobrirmos como todos nós podemos viver juntos neste planeta. Não somente os humanos, mas todos os seres com os quais partilhamos este lugar. Precisamos seriamente de ajuda, precisamos descobrir o que fazer, se não este planeta vai se tornar inabitável por um longo tempo.

Eu não estou pensando em nós primeiramente enquanto humanos, estou pensando em todos os habitantes da Terra. Porque as espécies vêm e vão, e, com a espécie humana não é diferente. Às vezes temos que pensar dessa maneira espaçosa para decifrar: que trabalho estamos fazendo neste momento para garantir um futuro? Que trabalho estamos fazendo para ajudar os outros a pensarem um mundo sem racismo e sem violência?

Frequentemente eu me pego voltando aos tempos de escravidão nos Estados Unidos. Advinda dessa inspiração da abolição da escravidão, vêm os nossos cuidados. Porque a presunção foi que, depois de várias emendas passarem e de presidentes anunciarem a escravidão como abolida, só havia uma única coisa a se fazer para se livrar da escravidão.

Aqueles que estavam querendo, aqueles que eram ativistas do underground… Tenho certeza que eles tinham uma visão a longo prazo. Estou certa de que enquanto eles não sabiam necessariamente o que era viver em um mundo que não fosse mais poluído pela escravidão, sabiam da consequência do trabalho que eles estavam fazendo naquela altura. E foi, basicamente, o povo negro que ganhou a tão conhecida Guerra Civil.

Eles compreenderam que nos beneficiaríamos do trabalho que fizeram nessa época. Não sabiam quem éramos e nem exatamente como isso se daria. Porém, havia essa palavra: liberdade. Ela inspirou-lhes para que trabalhassem no sentido de criar um novo conjunto de circunstâncias, no país e no mundo, que nem eles mesmos chegariam a experienciar. E eu digo isso porque sei que temos que tentar sair desse paradoxo capitalista e não pensar só em nós mesmos.”






Texto e fotos por Stefani Costa
Tradução por Fernando Araújo

Em Lisboa, Angela Davis fala do fim da polícia e lembra dos que sofreram racismo na Ucrânia

Por
- Latino-americana, imigrante e jornalista. @sttefanicosta