Bob Dylan substitui telas de celular pelo marejar brilhante nos olhares de seu público em Lisboa


Às 20h00 em ponto dessa agradável e calma noite de domingo (do 4 de junho), em um palco à base de alguns poucos focos de luzes cálidas, Bob Dylan e sua banda surgiram em meio à penumbra na arena do Campo Pequeno.

Era possível notar apenas a silhueta do senhor Robert Zimmerman (nome de nascença de Dylan).

O singelo palco (utilizando-se apenas de metade da estrutura do tablado, sem letreiro, projeção ou telão) só contava mesmo com os músicos e os seus instrumentos. Ao redor deles pequenos amplificadores vintage captavam o som e, devidamente microfonados para o sistema de áudio, propiciaram uma ambiência de épocas remotas.

Também pôde-se experimentar essa imersão épica no espetáculo muito por conta de ter sido proibida a utilização de celulares dentro do recinto onde dava-se a performance. Os dispositivos precisavam ser desligados e depositados em bolsas com trava no ato da entrada, essas apenas foram abertas para resgate dos mesmos depois de o evento ser finalizado.

Bob, aos 82 anos, iniciou a turnê Rough and Rowdy Ways em Lisboa (na primeira de duas noites) tocando um belo piano preto, onde permaneceu durante todo o show. No arranque, com a faixa ‘Watching the River Flow’, ele começou a cantar os versos bem suavemente e foi aos poucos mostrando uma dinâmica vocal diferente da edição de estúdio, que veio mais forte com o crescendo que a banda realizou culminando no refrão.

A sequência veio com uma nova versão de ‘Most Likely You Go Your Way and I’ll Go Mine’ (primeiramente lançada em 1966 no álbum Blonde on Blonde. A atual é do álbum ao vivo que saiu há dois dias atrás, intitulado Shadow Kingdom (gravado durante o streaming, sem público, emitido durante a pandemia) que possui diversas releituras do passado.

‘I Contain Multitudes’ e ‘False Prophet’ (do álbum Rough and Rowdy Ways de 2020) trouxeram a ritmicidade blues que tem fascinado os ouvintes de Bob Dylan nesses anos mais recentes. A plateia, toda sentada em confortáveis cadeiras almofadadas ao logo do anfiteatro, marcaram com palmas alguns dos trechos mais empolgantes.

‘When I Paint My Masterpiece’, ‘Black Rider e ‘My Own Version of You’ deram o andamento à atmosfera advinda do blues em sua mais impactante magnitude.

No decorrer do concerto ‘To Be Alone With You’ e ‘Gotta Serve Somebody’ fizeram com que Bob Dylan, amparado pelas tarimbadas batidas do esplendoroso baterista Jerry Pentecost, brindasse a audiência com vocais um bocado mais enérgicos.

Outro momento de notável êxtase dos presentes aconteceu em ‘Goodbye Jimmy Reed’, também do álbum de 2020 que deu nome à tour em vigor.

O encerramento ficou por conta da apaziguante balada ‘Every Grain of Sand’ (do álbum Shot of Love, de 1981), no entanto, em mais uma versão atualizada. Dylan, após a sua exímia exibição, levantou-se e caminhou lentamente para o lado de seu piano… Somente ficando ali, de pé.

Aparentemente sem fixar o olhar em qualquer ponto em específico, ouviu uma fortíssima e incessante salva de palmas até que deixasse o palco.

Essa foi uma espécie de adeus, mas sem nem sequer um aceno ou palavra. O momento, assim, por si só, expressou tudo que era preciso e a lenda viva retirou-se delicadamente a vagarosos passos, pisando macio e ciente de que a música cumpriu, mais uma vez, o seu propósito mais sublime: fazer-nos simplesmente sentir as mais plenas emoções da vida.




Foto em destaque por William Claxton

Bob Dylan substitui telas de celular pelo marejar brilhante nos olhares de seu público em Lisboa

Por
- Produtor e comunicador musical.