Sísifo: um monólogo sobre a  vida


O mito de Sísifo fala sobre um homem muito esperto e inteligente, o rei de Tessália. E caso você não se familiarize com o mito, te conto um resumo aqui. Se você já conhece, pode pular para o parágrafo 4.

Sísifo contou ao Asopo, deus dos rios, que Zeus tinha sequestrado a sua filha Egina. Isso fez com que Zeus ficasse irado e ordenasse que o deus da morte, Tanatos, perseguisse-o. Mas por ser tão esperto, Sísifo conseguiu escapar de Tanatos e o prendeu. Com Tanatos preso, os mortos não podiam mais alcançar o Reino das Trevas. Foi necessário que Ares o libertasse. Enfim, Tanatos conseguiu matar Sísifo.

Ao chegar no reino dos mortos, Sísifo alegou que sua mulher não havia feito as queixas fúnebres e que precisava voltar para castigá-la. Hades deu permissão para que ele fizesse isso e voltasse ao reino dos mortos. Mas ele não voltou. Em mais um golpe de esperteza, outro deus foi enganado. E como castigo, Hermes, o deus mensageiro e condutor das almas para o além, condenou Sísifo a empurrar uma pedra rumo ao topo de um monte até derrubá-la, repetindo esse movimento por toda a eternidade.

A peça, que leva o mesmo nome do mito, é encenada por Gregório Duvivier num monólogo em que ele destrincha a vida se baseando nesse movimento de subida e descida, sem parar.

Assisti o espetáculo em abril de 2022, e, por alguma razão, comecei a escrever o texto com a intenção de falar sobre música, mas as palavras saltaram sobre a peça e deixei que fluísse. Em Sísifo, quando parece que Gregório atingiu o topo, ele cai e volta para o mesmo movimento.

Quais são as pedras que empurramos morro a cima, derrubamos de lá, e voltamos a empurrar até o fim de nossas vidas?


Gregório Duvivier em Sísifo – Foto por Elisa Mendes




É fácil de se identificar com o texto. Nós humanos não somos tão diferentes assim, mesmo que a criação tenha sido outra, que a cultura seja diferente, que a língua materna seja outra que não a nossa. Somos muito parecidos, e, muitas vezes, isso é assustador. Como aquele verso da canção de Hotel Fraternité, do Arnaldo Antunes: “Meu inimigo/Debruçado sobre o balcão/Na cama em cima do armário/No chão por toda parte/Agachado/Olhos fixos em mim/Meu irmão.”

Enquanto Gregório fala sobre o desastre iminente do colapso ambiental, me lembro de uma matéria que li sobre a ilha de roupas no Deserto do Atacama. Penso no desastre em Mariana, em Brumadinho. Vivemos menos que uma sacola de plástico, essas que levam aproximadamente 400 mil anos para se decompor.

Não podemos deixar cair no esquecimento os horrores que vivemos durante os anos de pandemia, as explosões de fake news, a distopia diária, o horror crescente diante da ameaça fascista que barateia a vida humana dentro do sistema capitalista.

Nesse subir e descer de rampa, Gregorio Duvivier vai falando sem parar sobre todos os temas que atingem a vida de um indivíduo comum: a política, o trabalho, a família, os sonhos, as paixões, os términos, o medo de recomeçar.

Não somos Sísifo, na ideia romântica. Não fomos amaldiçoados por Hermes, mas, mesmo assim, ainda nos levantamos todos os dias como quem precisasse subir uma montanha empurrando uma pedra enorme para depois derrubá-la e voltar a empurrar outra morro a cima. Não há descanso. Não há luta que termine enquanto existir vida.

Isso também me fez lembrar de um trecho do lindo discurso de Chico Buarque ao receber o prêmio Camões de Literatura das mãos do presidente Lula, em Portugal: “Aquele governo foi derrotado nas urnas mas nem por isso podemos nos distrair, pois a ameaça fascista persiste, no Brasil e por toda parte”.

Com texto de Vinícius Calderoni e Gregorio Duvivier, a peça pode não agradar a todos e todas, mas essa não é a função da arte. Agradar pode ser um efeito dela. Por outro lado, o monólogo consegue ser aquela voz que precisa ser ouvida, até mesmo quando é a nossa própria.

Seguindo por essa linha de raciocínio, ao sentar na rampa em um momento de pausa, Gregório diz à plateia, como se falasse olhando nos olhos de cada um: “você é um mundo dentro de outro mundo”.


Gregório Duvivier em Sísifo – Foto por Elisa Mendes



A peça já não está mais em cartaz, mas é possível adquirir o livro pela editora Cobogó.

Foto de capa por Annelize Tozzeto

Sísifo: um monólogo sobre a vida

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- Nascida nos anos 90 e apaixonada por música e escrita, é fã de Beatles e Rolling Stones. Acredita que escrever é como soltar pássaros de gaiolas. Instagram: @eladaninelo @daniescreve / Twitter: @danislelas