Sharon Den Adel e o resultado da propaganda anti-Rússia

Cada vez mais fica explícito o quão despolitizada é uma parcela do público e dos artistas de heavy metal. Em entrevista ao site Blabbermouth, Sharon Den Adel (vocalista do grupo neerlandês Within Temptation) mostrou ser um exemplo típico da propaganda ocidental anti-Rússia que predomina sobre a Europa.

Durante a conversa, Sharon expõe que recebeu críticas pelas letras mais ‘politizadas’ do recente álbum do sexteto, que faz uma abordagem legítima à opressão violenta sofrida por mulheres iranianas. No primeiro trecho que destaco, a vocalista externa um dos maiores clichês liberais, o de que as democracias europeias garantem ampla liberdade de expressão:

Essa é a diferença também de viver em uma democracia. Posso dizer o que quiser, dentro de certos limites, é claro, mas sou livre para fazê-lo. É essa a diferença, em vez de viver no Irã ou na Rússia, seja onde for, eu já estaria em perigo.”

Imagino que Sharon não tenha noção do que fala, mas isso não tira a sua responsabilidade. É como se houvesse um pressuposto de que a democracia liberal da Europa Ocidental fosse moralmente melhor do que em países que não adotam o mesmo modelo. Como se existisse um sistema político-eleitoral a ser copiado, desconsiderando assim os processos históricos de cada nação. Quando Sharon critica a Rússia, ela desconsidera que aquele país teve processos históricos políticos e sociais diferentes da Europa Ocidental.

A Rússia saiu de um modelo feudal que durou séculos para o regime soviético. Depois de décadas, com o final do regime, passou a adotar o presidencialismo como sistema de governo, com normas, tradições e leis chanceladas pelo povo russo. Se em alguns temas a Rússia tem práticas mais conservadoras, não é exagero pensar que isso reflete a sua própria sociedade. Porém, não custa lembrar que em outros temas a Rússia está muito à frente das nações que um dia colonizaram territórios na América Latina, África e Ásia, mas hoje agem como paladinos da ética nos debates globais.

É de conhecimento que a sociedade russa e o seu governo estão atrasados na garantia dos direitos LGBTQIA+, quando comparamos com os atuais debates sobre Direitos Humanos. Fica uma observação de que a mídia ocidental se esquece desse debate em outros países com leis mais severas contra as mulheres e contra a população LGBTQIA+, como é o caso da Arábia Saudita, que tem feito um imenso trabalho de soft power com o objetivo de se aproximar “culturalmente” do Ocidente.

No que tange a política internacional, a Rússia tem se posicionado em favor da autodeterminação de países como Cuba e Venezuela, em que a situação econômica e social é emergencial, tendo como causa as graves sanções e os embargos econômicos impostos pelos EUA com a conivência da Europa Ocidental e de governos de direita ao redor do globo. Não é estranho que só a Rússia seja personificada pela mídia como símbolo do mal?



Falta consciência de classe

Ainda na mesma entrevista Sharon expõe a sua opinião sobre a Guerra na Ucrânia: “Mas o fato de que, para nós, era tão claro que a Rússia é o agressor e sentimos muito que um país soberano como a Ucrânia fosse atacado daquela forma”.

Sharon considera a Rússia como agressora no atual conflito. Entretanto, será que ela sabe que uma base militar da OTAN significa ameaça para a população russa que vive próxima às fronteiras com o leste Europeu? Provavelmente a vocalista e seus companheiros de banda não compreendem que, após o fim do Pacto de Varsóvia, os EUA não cumpriram o acordo de não expansão da OTAN e avançaram as bases militares em direção às fronteiras russas cinco vezes nos últimos 30 anos.

E sobre os Acordos de Minsk? Será que ficaram sabendo da notícia de que depois da Euromaidan houve uma manobra para ganhar tempo e armar o exército ucraniano? E o que Sharon teria a opinar sobre o impedimento dos partidos de esquerda da Ucrânia e dos grupos neonazistas incorporados ao exército ucraniano?

Den Adel também expressa preocupação com países que oprimem a sua população:

Não acho que precisamos que outro país seja oprimido. Precisamos de mais democracia em todos os lugares, penso eu. E acreditando nisso, espero que possamos apoiá-los até o fim, porque só vai piorar para todos se houver mais países como a Rússia que oprimem a sua população”.

Onde estavam essas preocupações com opressão quando o Within Temptation fez shows em Israel? Será que eles não sabem que aquele Estado sustenta um processo criminoso de apartheid e de limpeza étnica contra os palestinos? Sharon não está informada o suficiente para saber que o Estado de Israel aprisiona e mata crianças? Pois o que fica evidente é que quando a opressão é contra africanos, asiáticos e latino-americanos, a preocupação europeia diminui ou desaparece.

Como pessoa pública, a líder da banda neerlandesa deveria ter mais responsabilidade quando expressa argumentos que possam subjugar uma nação e o seu povo. A Rússia é um Estado que, como qualquer outro, tem suas qualidades e falhas. É desrespeitoso menosprezar um país que produziu (e produz) grandes intelectuais e inúmeros avanços tecnológicos e científicos, com base na narrativa da União Europeia (subserviente aos interesses imperialistas dos EUA) que ‘vilaniza’ a Rússia e outros países que se opõem à hegemonia eurocêntrica e norte-americana, como os casos da China, Cuba, Irã, Palestina, Venezuela, Vietnã e tantos outros.

Sharon Den Adel poderia refletir mais sobre o seu próprio país, que deixou um imenso lastro de sangue por séculos de colonização, resultando na construção de um estado de bem-estar social financiado pela expropriação de riquezas das colônias que jamais ouviram um pedido sincero de desculpas ou ações políticas eficazes de reparação.


Texto por Pedro Valença, guitarrista da banda Pademmy
Foto em destaque por Edi Fortini
Edição por Fernando Araújo

Sharon Den Adel e o resultado da propaganda anti-Rússia

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- Produtor e comunicador musical.